"As crianças podem ser vegetarianas e saudáveis, assim como atletas e grávidas"

"As crianças podem ser vegetarianas e  saudáveis, assim como atletas e grávidas"

 

Nuno Alvim é o Diretor da Associação Vegetariana Portuguesa e motiva-o a redução do sofrimento de todas as formas de vida. Estivemos à conversa com ele sobre os preconceitos associados com a dieta vegetariana, as opções vegetarianas nas escolas, o que impede a população de diminuir o seu consumo de alimentos de origem animal e muito mais.

 

Em primeiro lugar, porquê ser vegetariano?

Uma boa questão, que eu sugiro que pode ser mais bem respondida se for invertida. Que boa razão ou razões poderão existir para continuarmos a comer animais e não sermos vegetarianos? Uma vez que os benefícios para a saúde desta mudança na alimentação (quando feita de forma equilibrada) estão já bem substanciados por décadas de investigação científica, os benefícios climáticos são também incontornáveis, nem que seja pelo simples facto de que produzir hortícolas ou leguminosas exige muito menos recursos finitos, como a água ou solo, e que não necessitamos estritamente de consumir animais para sermos saudáveis (conforme o reconhece a Direcção-Geral de Saúde Portuguesa), que razões poderão existir para continuarmos a fazê-lo e assim, no processo, contribuir para também causar miséria e sofrimento imenso a milhões de animais?

 

A Associação Vegetariana Portuguesa (AVP) tem como missão promover a saúde humana, reduzir o sofrimento animal e promover a sustentabilidade ambiental. Como trabalham para conseguir atingir estes objetivos?

Temos uma abordagem multidimensional, que é algo inevitável para alcançarmos uma transformação paradigmática do nosso sistema alimentar, e que passa por termos uma pequena equipa que se desdobra para fazer trabalho educativo com as escolas, dialogar com municípios e outras instituições públicas, informar os consumidores, trabalhar em prol de mudanças legislativas, e também estabelecer uma dialética construtiva com o sector empresarial.  Por outras palavras, procuramos trabalhar a um nível mais macro, e muitas vezes menos evidente, e também a um nível mais micro, mais diretamente com as pessoas.

 

De que forma podemos explicar ao cidadão comum que a alimentação vegetariana é mais sustentável do que uma alimentação que inclui alimentos de origem animal?

A prova disso dispensa estarmos a citar muitos números e estatísticas, ainda que estes comprovem exatamente isso. Basta pensarmos numa noção simples: enquanto espécie humana, nós domesticamos imensas plantas para consumo próprio (desde os brócolos, ao feijão, e à batata), que são seres fotossintéticos, os quais produzem a sua própria energia utilizando a luz do sol, e nós podemos viver uma vida saudável só nos alimentando deles (sermos omnívoros significa apenas que podemos comer plantas e animais, mas não implica que temos necessariamente que comer ambos). Ao criarmos animais para os comer, temos de os alimentar com plantas que podíamos estar a usar para alimentar diretamente humanos, e os animais são seres vivos muito mais energeticamente ineficientes que as plantas, pois desperdiçam imensa energia em movimento e desenvolvimento muscular. Ou seja, o que gastamos para os criar até ao momento de os abater e converter em carne é muito mais do que aquilo que obtemos. Isto traduz-se não só num uso muito ineficiente de recursos, mas também em maior utilização de terra potencialmente cultivável (ocupada por gado), em gastos enormíssimos de água, para não mencionar outras externalidades, como as emissões de gases com efeito de estufa, ou a poluição causada por indústrias de produção animal (como se vê no caso de Leiria, em Portugal). Mas não se fiem só pelo que digo: a própria Organização das Nações Unidas[1] já repetidamente insistiu que um padrão alimentar vegetariano (ou predominantemente) é fundamental à redução da nossa pegada ecológica.

 

Sente que existe cada vez mais uma preocupação ambiental por parte dos cidadãos em mudar para uma dieta vegetariana? E como foi essa evolução, é recente, ou já sente estas preocupações há alguns anos?

Sim, e os inquéritos feitos em Portugal apontam para isso mesmo. Em 2020 foi feito o chamado II Grande Inquérito da Sustentabilidade[2], publicado pelo Instituto de Ciências Sociais, que na altura concluiu que mais de 50% dos portugueses estava disposto na altura a reduzir o seu consumo de carne, e muitos deles estão motivados por preocupações ambientais, sendo que são particularmente os mais jovens e as mulheres que manifestam essa tendência. Mais recentemente, em 2021, uma consultora espanhola também publicou o relatório Green Revolution, um estudo representativo que mostrou que a maioria dos vegetarianos evidencia a preocupação com a preservação ambiental como um dos principais fatores a pesar na sua mudança de alimentação.

Ou seja, a preocupação em conhecer o impacto ambiental daquilo que compramos e comemos tem sido um impulsionador de mudanças significativas na indústria, particularmente a alimentar. A mudança parece ser recente, o que faz sentido, já que apenas nos últimos anos, particularmente na última década, se instalou no discurso dos media, e o avanço ubíquo das internet e redes sociais em muito contribuiu para a difusão da informação.

 

O vegetarianismo e o veganismo têm vindo a ganhar cada vez mais aderentes e uma maior popularidade. Isto representa uma verdadeira mudança comportamental na população ou apenas uma moda?

Quem acha que a alimentação vegetariana é um fenómeno hippie que só apareceu há umas décadas para cá ou que os muitos jovens adolescentes vegetarianos estão só a atravessar uma fase temporária de acne e overdose hormonal, bem que estão a ignorar a história milenar do vegetarianismo, que começou em figuras históricas como Pitágoras ou Ovídio, e que chegou até a ter uma forte expressão nas primeiras décadas do século XX em Portugal, numa altura em que já existiam sociedades vegetarianas no nosso país (a partir de 1910 e troca o passo).

Por um lado, é verdade que quer o veganismo como a alimentação vegetariana parecem ter ganho alguns contornos de uma tendência social (ou moda, como alguns lhe chamam), já que atualmente toda a gente já foi experimentar um restaurante vegetariano com amigos, todos conhecem pelo menos um ator ou atriz que já foi vegetariano (mesmo que temporariamente), e todas as empresas parecem querer lançar a sua linha de produtos veganos, mesmo quando por vezes nem entendem o conceito. Parece-me inevitável que surjam estas réplicas culturais quando um movimento social atinge uma maior visibilidade.

Porém, dada a miríade de razões bastante legítimas e bem fundamentadas pelas quais cada vez mais consumidores têm vindo a remover os animais dos seus pratos, ou a reduzir significativamente o consumo de carne e peixe, e a convicção das suas decisões, parece-me que estamos claramente perante um movimento sociocultural de repercussões importantes.

 

O que acha que impede a maioria da população de se tornar vegetariana?

Para a maioria das pessoas, continua a ser a falta de informação, ou até mesmo a desinformação, isto é, uma série de mitos associados ao conceito de alimentação vegetariana, tal como esta alegadamente ser restritiva e aborrecida, não permitir satisfazer todas as necessidades nutricionais (particularmente, a ideia de que a proteína só se encontra em produtos de origem animal) ou ser dispendiosa, algo que não tem de ser o caso. Atualmente, já não se pode propriamente falar numa falta de oferta, já que inúmeras superfícies comerciais têm à disposição uma grande panóplia de alimentos alternativos á carne, peixe ou derivados (como o ovo e lacticínios).

 

A AVP é a entidade licenciadora da V-Label em Portugal. Sente que os consumidores valorizam os produtos com a certificação? E as marcas, têm procurado cada vez mais obter o selo V-Label?

Sim, temos verificado um aumento da procura das empresas e marcas respetivas nos últimos anos, particularmente desde 2019. Já quanto aos consumidores, acreditamos que valorizam pelo facto de este ser um selo internacional (com mais de 50.000 produtos certificados) e de haver uma avaliação independente, feita por especialistas. Há muitos casos em que algumas empresas simplesmente optam por criar o seu próprio selo “vegan” por exemplo, e sem sequer entenderem o conceito e filosofia de vida por trás, o que gera confusão no consumidor. Existindo uma entidade independente por trás que compreende os conceitos e que faz uma avaliação minuciosa dos produtos acaba por transmitir mais confiança ao consumidor, a nosso ver.

 

Sabemos que um dos grandes mitos da alimentação vegetariana é que os vegetarianos não têm tanta força física ou podem mais facilmente ter determinados tipos de insuficiências alimentares. Posto isto, a dieta vegetariana pode ser nutricionalmente adequada? E pode ser adotada por qualquer pessoa?

Sim, pode. A alimentação vegetariana pode ser adotada por qualquer pessoa, e não nos referimos apenas a adultos; as crianças podem ser vegetarianas e extremamente saudáveis, assim como atletas de alta competição, grávidas e humanos de todos os feitios e formas. Se não acreditarem, podem consultar os vários manuais de saúde da Direcção-Geral de Saúde Portuguesa[3], desenvolvidos por equipas especialistas de nutricionistas, e que dizem isso mesmo. Contudo, vale a pena aqui enfatizar que as necessidades nutricionais variam muito de indivíduo para indivíduo, e aquilo de que uma criança precisa é muito diferente do que precisa um adulto, ou um atleta. Por isso, é muito importante que alguém que esteja a iniciar uma mudança na sua alimentação, ou a ponderar esta alimentação para terceiros, se aconselhe junto de profissionais de saúde[4] qualificados, nem que seja apenas numa primeira etapa.

 

É possível fazer uma alimentação desequilibrada sendo vegetariano ou comendo alimentos de origem animal – basta optarmos por opções processadas, alimentos menos saudáveis (doces, batatas fritas, salgados...). Para a população mundial, é preferível uma alimentação vegetariana desequilibrada ou uma alimentação equilibrada que inclui, ocasionalmente, alimentos de origem animal?

Ter uma alimentação baseada essencialmente em alimentos altamente processados ou pouco nutritivos (como os exemplos das batatas fritas, bolos, entre outros) é algo insustentável e que infelizmente se observa nos dois lados do espectro, contudo, muito mais junto da grande fatia de consumidores que consome animais; ainda que adotar uma alimentação vegetariana ipsis verbis (ou seja, uma em que não estão presentes quaisquer alimentos de origem animal) não seja, de maneira alguma, uma garantia de que a pessoa tem um padrão alimentar saudável, a verdade é que, tendencialmente, muitas pessoas vegetarianas consomem uma quantidade maior de vegetais e de fibra inerente aos mesmos, benéficas para a saúde.

Quanto ao exercício mental colocado, parece-me desnecessário colocar essa dicotomia, já que parece reforçar a ideia falsa de que muitos consumidores vegetarianos não sabem se alimentar, quando sucede que muitos deles acabam por ter mais cuidados nutricionais do que a grande maioria da população que ainda consome carne.

 

Ainda há algum preconceito com a alimentação vegetariana nas crianças, pois acredita-se que poderá afetar o seu desenvolvimento e crescimento. Esta informação é correta? Ou os bebés e as crianças também podem ter uma alimentação exclusivamente vegetariana? 

Sim, é uma das grandes quimeras da alimentação vegetariana. Se por um lado já ninguém pestaneja quando se fala de um amigo vegetariano no trabalho, arma-se ainda uma escandaleira quando se houve falar de um pai e mãe que decidiram dar uma alimentação vegetariana à sua criança, falando-se de imposição (como se que os pais que comem carne também não estivessem a impor a sua forma de alimentação aos seus filhos).

Um dado que sempre achei curioso é que os pais passam muitos anos a fazer um esforço para que a canalha coma as verduras no canto do prato, e quando eles decidem que só querem comer mesmo verduras (de todo o tipo e género), eles passam-se dos carretes. Parece-me que esta ideia de que os bebés ou crianças não podem ser vegetarianas e saudáveis está radicada fortemente no mito de que a carne, o peixe ou ovos são as únicas boas fontes de proteína. Nada mais errado: existem inúmeras leguminosas (como feijão, grão, soja e até mesmo o tremoço) que têm um perfil proteico muito bom. E, de resto, já sabemos que o mundo vegetal é riquíssimo em inúmeras vitaminas e minerais essenciais à saúde dos petizes. Contudo, é normal que existam dúvidas e incertezas, e é bom que os pais se preocupem em orientar a alimentação dos mais pequenos por princípios saudáveis. Por isso, recomendamos que haja acompanhamento de um nutricionista, pelo menos inicialmente. E para quem quiser se informar melhor, a AVP lançou recentemente um Ebook gratuito sobre alimentação vegetariana para grávidas, bebés e crianças[5].

 

Nas escolas portuguesas ainda há poucas opções vegetarianas disponíveis. Como é que a AVP tenta melhorar esta situação? Costumam trabalham em conjunto com estabelecimentos de ensino?

Se estivermos a falar de escolas, em particular, é verdade que as opções vegetarianas ainda são escassas. Consideramos que foi um grande feito Portugal ter aprovado a primeira lei do mundo que tornou a opção vegetariana obrigatória por lei, em 2017, algo pelo qual a nossa associação lutou durante vários anos, o que significa que pelo menos todas as famílias têm direito a reivindicar um menu vegetariano para os seus educandos em qualquer escola público, algo que é extensível também a universidades, hospitais e outros serviços públicos. Contudo, a vasta maioria das escolas não disponibiliza essa opção prontamente, todos os dias, e coloca apenas à disposição mediante procura de alunos específicos. A AVP tem estado a trabalhar no sentido de tornar a alimentação nas escolas mais sustentáveis, particularmente através do seu projeto Prato Sustentável (www.pratosustentavel), o qual está a ser desenvolvido em conjunto com vários municípios e escolas.

 

Em Portugal, existe uma preocupação por parte dos nutricionistas em acompanhar devidamente quem pretende iniciar-se numa alteração da sua dieta para uma alimentação vegetariana?

De algum modo sim, porque em 2015 já foram publicados manuais pela DGS que servem de orientação para os profissionais de saúde neste ramo (ex. médicos de família, nutricionistas) que estão a acompanhar famílias ou indivíduos que decidem alterar a sua dieta. Contudo, muitos destes profissionais continuam a evidenciar não estar capacitados para dar orientação nutricional no caso de uma transição para uma alimentação vegetariana (ou estritamente vegetariana), algo que frequentemente é motivado por uma aversão à mudança de paradigma nutricional e devido a alguns preconceitos culturais. Da parte da AVP, estamos comprometidos em disseminar esta informação e em tornar o conhecimento sobre nutrição vegetariana mais ubíquo e presente em todas as áreas da saúde.

 

O Dia Mundial do Vegetarianismo é celebrado a 1 de outubro, desde 1977. Quais os principais objetivos com a criação desta data comemorativa? E como deve ser celebrada?

A data visa celebrar aquilo que é realmente uma metamorfose muito positiva na vida de milhões de pessoas em todo o mundo, e muitos milhares em Portugal. Como nos alimentamos pelo menos três ou mais vezes por dia, e a comida revolve à volta da nossa mesa e hábitos sociais, é normal que exista um sentimento de identificação grande com a nossa forma de nos alimentarmos, enquanto indivíduos e coletivo. Assim, esta data permite que muitos que se identificam com este estilo de alimentação vejam a sua forma de estar na vida e na sociedade reconhecida e consagrada.

 

Falando de uma perspetiva pessoal, o Nuno é vegetariano há quanto tempo? E o que o motivou a fazer essa mudança?

Já o sou desde 2012, portanto, há dez anos, e tornei-me vegan em 2013. A minha principal motivação é sem dúvida o querer procurar reduzir o sofrimento existente no mundo, em todas as minhas ações, na medida do praticável, e como mudar a minha alimentação é algo que surgiu a tão pouco custo pessoal, e até com o prazer da descoberta de um novo mundo de alimentos, estou bastante feliz por ter tomado esta decisão, que foi uma das melhores que fiz na minha vida.

 

A primeira coisa que lhe vem à cabeça quando pensa em...

- Associação Vegetariana Portuguesa? Mudar a alimentação.

- A maior paixão? A natureza e as suas formas de vida.

- O maior receio? Não viver uma vida bem examinada.

- O que o move?  A paixão de querer reduzir o sofrimento no mundo.

- A sua inspiração? Livros, variados, e a natureza.

- Um sentimento? Empatia.

- Um livro? Walden, de Henry David Thoreau.

- Um filme? Dances with the Wolves.

- Uma viagem? À Costa Rica

- 2021? Trabalhar online

- 2022? O regresso anormal à normalidade

- Futuro? Imprevisível

 

 

[1] Fonte: https://www.un.org/en/climatechange/science/climate-issues/food

[2] Fonte: https://www.dn.pt/vida-e-futuro/portugueses-dispostos-a-reduzir-consumo-de-carne-e-pagar-mais-por-producao-sustentavel--11266464.html

[3] Fonte: https://www.avp.org.pt/manuais/

[4] Fonte: https://www.avp.org.pt/nutricionistas-para-quem-segue-alimentacao-vegetariana/

[5] Fonte: https://www.avp.org.pt/ebook-alimentacao-vegetariana-para-gravidas-bebes-e-criancas/