O tempo já não é o que era?

O tempo já não é o que era?

 

Desde criança que me lembro de ouvir a minha mãe dizer que “o tempo agora já não é o que era – agora não temos estações do ano”. E sabia bem de onde vinha essa conversa; segundo o que ela me contava, já o meu bisavô, que viveu muitos anos antes de mim, falava na mudança do tempo.

“Desde que o Homem foi à Lua, o tempo nunca mais foi o mesmo”, dizia o meu bisavô. E a minha mãe concordava, porque cresceu a ouvir o meu bisavô a “adivinhar” o tempo. Quando chovia no Natal, fazia sol no Carnaval. Quando havia um círculo à volta da Lua, no dia seguinte chovia. Era possível saber em que dia ia fazer sol, e se podia estrear roupa nova, com um mês de antecedência – bastava saber se a Lua Nova tinha entrado com chuva ou com bom tempo. Eram quase científicas, estas regras; todos os antigos as sabiam, e todos adivinhavam, quase sem falha, o tempo que ia estar nos dias seguintes, considerando o tempo que tinha estado há três semanas.

Agora, sabemos que ninguém consegue adivinhar o tempo apenas tendo em conta o mês em que está. Abril, águas mil, mas há meses de Abril em que quase não chove. Março, marçagão, manhã de inverno, tarde de verão – mas já passei melhores dias inteiros na praia em março do que em pleno agosto. O IPMA (Instituto Português do Mar e Atmosfera), que faz todas as pesquisas, estudos e análises de meteorologia em Portugal, consegue por vezes enganar-se redondamente de um dia para o outro. Afinal, já todos nós ouvimos nos nossos círculos de amigos ou de colegas de trabalho: “diziam que ontem chovia, e afinal não choveu!”.

No momento em que escrevo este artigo, estão a sair notícias de uma possível vaga de calor que vai afetar Portugal, fazendo a temperatura chegar aos 40ºC em algumas zonas do país, como é o caso do Alentejo. E essas notícias são constantes, todos os anos. Mas lembro-me de ser criança, há pouco menos de 20 anos, e de não morrer de calor em pleno maio. 

Um estudo realizado nos Estados Unidos mostrou que, na década de 1960, a média era de entre 1 a 2 vagas de calor por ano; na década de 2010, esse valor aumentou para cerca de 6 vagas de calor por ano[1]. Adicionalmente, no mundo inteiro, existem mais vagas de calor registadas entre 2000 e 2022 do que alguma vez foi registado anteriormente ao ano 2000.

Quando pensamos nas estações do ano, temos muito claro o que aprendemos na escola, e sabemos o que devíamos esperar de um Outono ou de uma Primavera portuguesa. Mas também sabemos que as alterações climáticas estão mais visíveis do que nunca, e que as vagas de calor aparecem em pleno maio, e temos por vezes cheias em outubro. Por isso, quando os nossos pais e avós dizem que o tempo já não é o que era, será que têm mesmo razão? Ou as mudanças já cá andavam há muito tempo, só que nunca ninguém deu conta?

 

ALTERAÇÃO DO EIXO DA TERRA

Como descobrimos facilmente nas aulas de Ciências da escola secundária, o planeta Terra não está totalmente “direito” – ele tem uma ligeira inclinação axial sobre o seu eixo. Durante longos períodos de tempo, a atração gravitacional de outros planetas e estrelas do nosso sistema solar muda lentamente esta inclinação da Terra. O quanto o eixo da Terra está inclinado para o Sol ou para longe dele muda ao longo de aproximadamente 41 mil ciclos (ou seja, anos terrestres).[2]

Neste momento, estamos aproximadamente a metade deste ciclo, com tendência a diminuir a inclinação. Regra geral, quando a inclinação começa a diminuir as estações ficam mais amenas; os invernos ficam mais quentes, os verões mais frios, e eventualmente a neve e gelo em altas altitudes acumulam-se em camadas de gelo. À medida que o gelo aumenta, ele reflete mais luz solar, fazendo com que a temperatura desça ainda mais.

Porque é que a alteração do eixo da Terra é importante para entender a diferença entre as estações de agora e de há décadas?

Como explicado, o eixo da Terra move-se uns pequenos centímetros de cada vez, com um ciclo que dura milhares de anos. Mas, na década de ’90, o eixo da Terra passou por uma mudança grande. O deslocamento polar mudou de direção repentinamente, e a taxa de deslocamento acelerou. Não era óbvio no momento o motivo para este acontecimento, mas agora sabemos que esteve relacionado com o derretimento das calotas polares, causado pelo aquecimento global.

Uma alteração repentina no eixo da Terra representa uma igualmente repentina alteração na forma como cada zona do planeta experiencia as estações do ano. As estações do ano acontecem porque a inclinação da Terra “aponta” diferentes zonas do planeta para o Sol conforme faz a sua viagem à volta da estrela por 365 dias. As diferentes partes do globo recebem diferentes quantidades de sol em cada estação do ano – e uma alteração nessa inclinação pode levar a consequências quase inexplicáveis.

Uma inclinação maior pode fazer com que certas zonas do planeta Terra aumentem o número de horas de sol por dia. Enquanto esta alteração pode parecer-nos positiva (mais luz, mais tempo para fazer atividades divertidas e mais tempo para dedicarmos ao mundo!) haver zonas do planeta com mais sol do que seria suposto em determinada altura do ano leva a consequências não tão positivas:

 

  • Os seres humanos desenvolveram o hábito de serem ativos durante o dia e dormirem à noite. Mais luz solar diminui a produção natural de melatonina (uma hormona que regula o ciclo do sono) – e isso pode levar a privação do sono ou a depressão. Também pode causar uma versão mais grave desses sintomas, que é a depressão sazonal. Atualmente, no Alasca (com zonas que têm 82 dias de luz solar seguidas, sem momentos de noite) 9% dos seus habitantes sofrem de depressão sazonal;
  • Um aumento de quantidade de luz recebida leva a um ainda maior e mais rápido derretimento das calotas polares, o que aumenta o nível médio da água. Cidades costeiras (como Nova Iorque, Tóquio, Copenhaga) podem ser completamente inundadas e desaparecer do mapa;
  • Águas mais quentes formam mais facilmente (e mais frequentemente) furacões, que se formam quando a água do mar evapora na superfície.

 

Neste momento, as alterações no eixo da Terra ainda não são suficientes para causar estes efeitos drásticos – mas sabemos que, caso as alterações climáticas continuem no seu ritmo alarmante, a atividade humana continuará a ter efeitos a uma escala planetária.

Por agora, conhecemos apenas um efeito óbvio: o período Antropoceno.

 

VAMOS FALAR DE GEOLOGIA?

Prometo que não vais “apanhar uma seca” nestas aulas de Geologia. Mas sou obrigada a falar-te neste assunto para que possas compreender o momento climático que passamos.

A linha do tempo desde a formação da Terra até ao presente está dividida por éons, eras, períodos, épocas e idades, e essas divisões são feitas de acordo com eventos geológicos na história do planeta. Não me vou alongar sobre a definição específica de cada um, porque aqui apenas nos interessam dois: períodos e épocas.

Os períodos são subdivisões das eras e, na Era atual, são reconhecidos três períodos:

 

  1. Palogeno: teve início no momento em que a Terra se recuperou da catástrofe que extinguiu os dinossauros (Extinção do Cretáceo-Paleogeno), em que os mamíferos se multiplicaram;
  2. Neogeno: a América do Norte e a América do Sul unem-se, o que acabou com correntes quentes do Oceano Pacífico para o Oceano Atlântico. O clima global arrefeceu e apareceram os primeiros hominídeos (grandes primatas);
  3. Quaternário: o período atual, definido pelo degelo e diminuição das camadas de gelo continentais, que causam mudanças climáticas e ambientais.

 

Neste último período, no qual nos inserimos, são reconhecidas duas épocas, sendo o Holoceno a época em que estamos atualmente. O Holoceno viu acontecer o desenvolvimento de grandes civilizações e os grandes impactos humanos no ecossistema terrestre. Mas vivemos um problema, muito relacionado com esses impactos: já conseguimos ver a extinção em massa do Holoceno, e o aparecimento de uma nova época: o Antropoceno.

 

EXTINÇÃO EM MASSA DO HOLOCENO

Esta extinção, considerada a sexta grande extinção no planeta Terra, está a ocorrer atualmente e tem visto desaparecer várias famílias de plantas, mamíferos, aves, anfíbios e répteis. Esta extinção é caracterizada especialmente pela presença de fatores de influência humana, e pela sua aceleração muito rápida. Historicamente, é das extinções mais curtas em termos de tempo geológico – tem extinguido vários animais em “apenas” dezenas a milhares de anos, enquanto outras extinções anteriores durante centenas e milhões de anos.

Todas as anteriores extinções em massa estiveram relacionadas com eventos de natureza geológica (impactos de asteroides, por exemplo), cujos efeitos se fizeram notar ao longo de milhões de anos, pelo que se torna assustador ver que o efeito da espécie humana tem consequências tão graves. Estima-se que a velocidade desta extinção é entre 100 a 1000 vezes superior a qualquer um dos eventos de extinção anteriores[3].

 

ÉPOCA DO ANTROPOCENO

A época do Antropoceno é considerada a terceira época do período Quaternário. Apesar de ser já adotado por vários cientistas, ainda não foi oficialmente reconhecido pela Comissão Internacional sobre Estratigrafia – por isso, ainda não podemos dizer que estamos de forma “oficial” nesta época.

Esta falta de reconhecimento deve-se, especialmente, ao facto de não se concordar com o momento preciso em que começou. A data mais amplamente reconhecida foi o início dos testes às bombas atómicas, na década de ’50, situando um possível início do Antropoceno em 1945 com a detonação da Trinity, a primeira bomba atómica.

A sexta extinção em massa, de que falei anteriormente, também é comummente conhecida como “Extinção em Massa do Antropoceno” e, caso esta época venha a ser reconhecida, esta denominação fará muito mais sentido.

Enquanto o Holoceno foi considerado um período de estabilidade ambiental, o Antropoceno é considerado a época em que essa estabilidade é perdida por influência das atividades humanas, podendo levar-nos a um novo mundo que não reconhecemos – da mesma forma que não reconhecemos o mundo em que vivam os dinossauros, milhões de anos antes de existirmos. Estas mudanças, que têm ocorrido de forma tão rápida, surgiram especialmente após a Segunda Guerra Mundial (devido à grande alteração na forma de consumo de energia e a um grande aumento populacional) e receberam o nome de “Grande Aceleração”.

Ora, se falamos que o tempo hoje já não é o que era... estamos certos. Se considerarmos a Segunda Guerra Mundial como momento de início da Época do Antropoceno, então o meu bisavô ainda era vivo nesse momento. Ainda conheceu um planeta antes dos problemas de excesso de população, antes das bombas nucleares que deixaram vestígios radioativos nos sedimentos dos Estados Unidos.

Por isso sabemos que o nosso tempo já não é o que era. E, infelizmente, sabemos também que nunca voltará a ser o que era. Resta-nos a esperança de poder um dia oferecer aos nossos filhos um mundo que, ainda que diferente, seja habitável.

 

Fontes:

https://climate.nasa.gov/news/2948/milankovitch-orbital-cycles-and-their-role-in-earths-climate/

https://www.businessinsider.com/earth-axis-spun-sideways-extreme-summer-winter-seasons-2019-7

https://www.mayoclinic.org/diseases-conditions/seasonal-affective-disorder/symptoms-causes/syc-20364651

https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.1810141115

https://agupubs.onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1029/2020GL092114

 

[1] Fonte: https://www.epa.gov/climate-indicators/climate-change-indicators-heat-waves

[2] Fonte: https://climate.nasa.gov/news/2948/milankovitch-orbital-cycles-and-their-role-in-earths-climate/

[3] Fonte: https://www.zora.uzh.ch/id/eprint/98443/1/Conservation_Biology_2014_early-view.pdf