Os Búzios e Conchas deram lugar ao Lixo Marinho

Os Búzios e Conchas deram lugar ao Lixo Marinho


Já lá vai o tempo em que o meu entretenimento na praia era apanhar conchas, búzios e pedras especiais. Conseguia passar uma manhã inteira nesta actividade e não me fartar.

Agora a actividade é outra e sinto que já não tenho mãos a medir!

As conchas, búzios e pedras deram lugar a beatas, cordas e redes de pesca, tampas de plástico, embalagens de iogurte, batatas fritas e refrigerantes, centenas de cotonetes e até pensos higiénicos!

Perante esta mudança de cenário, não consigo dar um passeio na praia e ser indiferente a todo o lixo que invade os areais. Tento todos os dias fazer a diferença, por pouca que possa parecer.

Antes passava uma manhã, agora passo manhãs, tardes e finais de tarde a apanhar estes novos “tesouros” vindos do mar. E sempre com a garantia de que, no dia seguinte, não vão faltar novos objectos para apanhar.

 

O PROBLEMA

Se moras perto da praia ou se ao fim-de-semana gostas de dar um passeio à beira-mar, com certeza que aquilo que refiro acima não te surpreende.

Não sentes que já não é possível ir à praia sem encontrar um pedaço de plástico a cada passo dado?

Segundo a Associação Portuguesa do Lixo Marinho (APLM), “O lixo que vemos nas nossas praias é apenas uma pequena percentagem de todo o lixo que existe nos oceanos (15%). De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio-Ambiente (UNEP), 15% do lixo marinho flutua à superfície ou está na coluna de água (a mais de 40 centímetros de profundidade). Os restantes 70% estão nos fundos marinhos, fora da nossa vista”. Ou seja, aquilo que vemos nas nossas praias é apenas uma ínfima parte deste problema.


Mas dando um passo atrás, o que significa lixo marinho?

Segundo a OSPAR, uma convenção marinha regional que tem como objectivo proteger o Meio Marinho do Atlântico Nordeste, o lixo marinho é “qualquer material sólido, persistente, fabricado ou processado, descartado ou abandonado no ambiente marinho e costeiro e encontrado nas praias”.

E como é que todos estes resíduos chegam às nossas praias? Num primeiro impulso, temos a tendência para dizer que a culpa está nas pessoas que, depois de um dia de praia, não se preocupam em levar o lixo que produziram. Mas este lixo deitado directamente nos areais corresponde a uma pequena parte da origem do problema.

Na realidade, o lixo que encontramos nas praias tanto pode ser de origem terrestre, como ter origem no mar. Falando do lixo que tem origem no mar, este advém de perdas deliberadas ou acidentais das embarcações que, por acção das correntes marítimas e do vento, acabam por chegar à orla costeira. Quanto à origem terrestre, há casos em que o lixo é depositado directamente na costa pelo homem (fly-tipping), mas também nos rios ou nas áreas urbanas e no campo que, por acção do vento e da chuva, é transportado directamente nos rios, chegando posteriormente às praias.

Segundo o Programa de Monitorização do Lixo Marinho, realizado pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), “relativamente aos itens identificados em 2020, para os quais foi possível atribuir potencial origem, 17% do total de itens recolhidos, as fontes com maior significado são: turismo e atividades recreativas (44%), saneamento (32%) e a pesca e aquacultura (18,5%).”

 

OS ARTIGOS MAIS ENCONTRADOS

Na altura de apanhar lixo nas praias, nada é inusitado. Na verdade, podes encontrar de TUDO. Desde as clássicas beatas, cotonetes, pacotes de sumo... Mas não te espantes se um dia encontrares: sapatos, capacetes, lâmpadas e até vassouras. Falo por experiência própria.

Se analisarmos esta questão com atenção, percebemos que há um aspecto em comum entre quase todos estes artigos: o plástico.

Referindo novamente o Programa de Monitorização do Lixo Marinho, “os resultados das campanhas de monitorização das 15 praias de Portugal Continental de 2020 mostraram que 88% dos materiais identificados são de plástico”.

Tendo por base o Relatório da ANP|WWF, intitulado X-Ray da Poluição por Plástico: Repensar o Plástico em Portugal, os 10 itens de plástico de objectos identificados e mais frequentes em todos os locais analisados (excluindo os fragmentos de plásticos), foram:

1. Beatas de cigarros
2. Redes e cordas de pesca
3. Tampas de plástico
4. Sacos de batatas fritas/guloseimas
5. Paus de chupa-chupas
6. Cordas
7. Cotonetes
8. Garrafas/contentores de bebidas
9. Embalagens de alimentos e comida
10. Balões, talheres/tabuleiros de plástico e sacos de plástico

Daqui podemos concluir que, destes 10 itens, grande parte corresponde a plásticos descartáveis e/ou de uso único! Para além disso, através do peso das redes e materiais de pesca, podemos concluir que as actividades recreativas e piscatórias têm também um grande impacto na produção do lixo marinho.

 

Consensual ou não, o documentário Seaspiracy: Pesca Insustentável, alertou para um grande culpado no que toca à origem do lixo marinho, que até hoje tinha passado despercebido para alguns: a indústria da pesca. De facto, são vários os artefactos de pesca que podemos encontrar nas nossas praias: desde cordas e redes de pesca a starlights (que servem para iluminar a pesca nocturna), mas também alcatruzes e covos, utilizados na pesca dos polvos, e ainda boias.

No Programa de Monitorização do Lixo Marinho, a APA também já referia que “Os produtos de plástico de utilização única e as artes de pesca que contêm plástico representam, portanto, um problema particularmente grave no âmbito do lixo marinho”.

Apesar de não estar referenciado de forma isolada neste Top 10, a verdade é que há um outro artigo que merece destaque, pelas piores razões possíveis: a esferovite.

Segundo Miguel Lacerda, activista ambiental e fundador da Associação Ambiental CascaiSea, “a esferovite que é utilizada pelos pescadores torna-se numa praga quando dá à costa”. De facto, quando uma boia de esferovite se perde no mar e acaba por embater nas rochas, desfaz-se em mil pedaços, pois é um material frágil.

Numa entrevista dada à Antena 1, Miguel Lacerda refere que “é urgente proibir a esferovite na pesca, proibir a esferovite no mar”.

 

IMPACTO DA COVID-19

O impacto da COVID-19 na produção do lixo marinho não é difícil de adivinhar.

Já alguma vez te deste ao trabalho de contar o número de máscaras que encontras por dia? Não na cara das pessoas com que te vais cruzando, mas antes no chão, ao lado de um caixote do lixo, à porta de um carro, à beira da estrada, na praia...

O Guardião do Oceano, um projecto português espontâneo que junta todos os cidadãos que querem participar de forma responsável e activa no processo de conservação do ambiente marinho e costeiro, queria conhecer esses números e por isso criou um desafio: #JulyMaskMonth.

Tal como o nome indica, o objectivo era apanhar o maior número de máscaras durante o mês de Julho (em 2020).

Este desafio espontâneo, que procurou alertar para as consequências negativas que o acto de atirar material de proteção individual (máscaras) para o chão pode ter em termos ambientais e de saúde pública, contou com a participação de mais de 50 associações, assim como de iniciativas e cidadãos preocupados com esta problemática.

Ao fim de 31 dias, foram recolhidas mais de 2700 máscaras (2716 precisamente, só em Portugal). Isto significa que, por dia, foram encontradas 90 máscaras!

 

HÁ ESPERANÇA?

Apesar de ainda haver muito por fazer, Portugal tem tomado desde já algumas medidas preventivas para o aparecimento do lixo marinho. Este aspecto tem-se devido muito à pressão exercida pela União Europeia.

Segundo o Relatório da ANP|WWF referido anteriormente, algumas das medidas e directivas políticas criadas em Portugal devido à UE, foram:

- Restrição aos sacos de plásticos leves;
- Proibição total para artigos plásticos descartáveis para os quais existam alternativas noutros materiais (talheres, cotonetes, pratos, palhinhas, colheres de café e varas de balões);
- Meta de 25% de conteúdo reciclado em garrafas de plástico até 2025 e de 30% até 2030;
- Recolha de 90% de garrafas de bebidas de plástico;
- Responsabilidade alargada do produtor, a fim de reforçar a aplicação do princípio do poluidor-pagador;
- Requisitos de rotulagem de produtos do tabaco com filtros, copos de plástico, pensos higiénicos e toalhetes húmidos para alertar os utilizadores para a sua eliminação correcta;
- Pedido da proibição em toda a UE de microplásticos adicionados intencionalmente aos produtos, como em cosméticos e detergentes, até 2020;
- Sensibilização, educação, consciencialização ambiental.

Para além destas medidas genéricas a toda a União Europeia, têm sido tomadas algumas medidas de prevenção e concepção em Portugal.


No entanto, há quem sinta que estas medidas demoram a ser aplicadas e que é preciso agir desde já. Como tal, têm sido vários os movimentos e projectos individuais a nascer e a crescer em Portugal:

- Xico Gaivota – a sua missão é simples: apanhar lixo em locais remotos, devolvendo à natureza a sua beleza, e criar peças de arte com o que encontra;

- The Trash Traveler – o biólogo alemão que criou o projecto Plastic Hike, que consistiu na recolha de plástico nas praias portuguesas. Foram 2 meses de aventura, percorrendo mais de 800km a pé (desde a praia da Foz do Minho, em Caminha, até aos areais de Vila Real de Santo António, no Algarve).

- Plasticus Maritimus – a bióloga Ana Pêgo, que identificou uma nova espécie invasora presente no mar: o plástico. Tem-se dedicado a alertar para as consequências desta espécie e, para tal, criou um projecto de sensibilização para um uso mais sensato dos plásticos.

- Mar à Deriva – sendo a Pegada Verde de Torres Vedras, não podíamos deixar de referir o trabalho incansável da Lídia e do Manuel Nascimento nas nossas praias. Este casal recolhe todos os dias lixo nas praias do Oeste e, inclusivamente, chegaram a desenterrar lixo com 40 anos em Peniche!

Seja pelas nossas próprias mãos, pela pressão política que vai existindo, pela acção de organizações e instituições ambientais, muito é o trabalho que temos pela frente. Mas importa não desanimar, pois mesmo as acções pontuais e/ou em pequena escala têm impacto. Todos podemos contribuir para que a nossa pegada do plástico no ambiente seja reduzida!

 

Fonte:

https://www.aplixomarinho.org/lixomarinho

https://sniambgeoviewer.apambiente.pt/GeoDocs/geoportaldocs/docs/Resultados_ProgramaMonitorizacao_LixoMarinho_2020.pdf

https://www.ospar.org/

https://d2ouvy59p0dg6k.cloudfront.net/downloads/plasticos__6_.pdf

http://awsassets.panda.org/downloads/wwfmmi_stop_the_flood_of_plastic_mediterranean.pdf

https://www.natgeo.pt/ciencia/2020/09/lixo-nas-praias-embalagens-de-plastico-para-alimentos-ja-ultrapassam-cigarros

https://observador.pt/2018/06/08/72-do-lixo-nas-praias-portuguesas-e-plastico/

https://www.rtp.pt/noticias/pais/lixo-marinho-praga-de-esferovite-na-costa-portuguesa-alerta-cascaisea_a1206264

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