Inês dos Santos Costa é a atual Secretária de Estado do Ambiente, tendo iniciado a sua governação em 2019. Num momento em que Portugal está a presidir ao Conselho da União Europeia, e que a exigência sobre a criação de novas leis e novos apoios para a área de sustentabilidade é cada vez maior, falámos com ela sobre o plástico descartável, o consumo de carne nacional e as metas da reciclagem.
Na generalidade, Portugal, enquanto país, preocupa-se com o ambiente? Ou é dada mais importância a outros setores da nossa vida?
Tenho a convicção clara de que o País se preocupa com o ambiente e que ter um “bom ambiente” tem associada a perceção de melhor qualidade de vida. Creio que o período que vivemos contribuiu para essa valorização: o “estar ao ar livre”, a necessidade de espaços verdes e de melhor qualidade do ar.
Há inclusivamente uma publicação muito recente da Comissão Europeia que usa dados das pesquisas online dos cidadãos europeus para perceber o grau de interesse de cada região relativamente a questões ambientais[1], e é interessante verificar que os padrões para Portugal se alinham com os padrões de países do centro-norte da europa, cuja cultura costuma estar associada a uma forte valorização das condições do sistema natural.
Mas ainda há trabalho a fazer no entendimento da responsabilidade individual e da responsabilidade coletiva em termos de ação. Ainda há a ideia de que a preservação do sistema natural é responsabilidade “de outros”: de que não vale a pena separar as embalagens porque eles depois misturam tudo; de que investir na prevenção de poluição e resíduos, em material reciclado, ou ir além da legislação são “custos de contexto” que não são estratégicos e até ameaçam a competitividade das empresas; de que a água, o saneamento, a gestão de resíduos são um custo, ao invés de um investimento na saúde dos cidadãos e do ambiente (e, sendo percebido como um custo, importa reduzir de qualquer forma).
Há, por isso, a tentação de externalizar essas responsabilidades para o Estado, ou seja, pede-se ação, proteção e mudança, mas sem que isso seja repercutido nos cidadãos ou empresas. Ora, desta forma, é impossível alinhar qualquer contexto socioeconómico com os princípios de sustentabilidade que os desafios ambientais nos exigem, seja do ponto de vista da criação e instituição de instrumentos de política pública que penalizem comportamentos incorretos e beneficiem os corretos, seja da “censura” social, e económica, de quem não adota esses princípios.
É exemplo frequente os incidentes ambientais serem reportados como inação do Estado, que não conseguiu prevenir ou agir celeremente, enquanto o suposto infrator, indivíduo ou agente económico, tipicamente carece do mesmo nível de exposição ou exigência.
Somos um país com muita área agrícola e muita produção própria, ainda que não em larga escala. As produções agrícolas são uma das áreas onde se nota que existem cada vez mais preocupações ambientais, e onde existem mais soluções. Sentem uma procura dos produtores por opções mais sustentáveis? Eles procuram os representantes locais para fazerem chegar as suas preocupações ao governo?
A abordagem à preservação e regeneração ambiental é diferente consoante o setor, mas há setores onde essa abordagem deve ser prioritária, e esse é o caso da agricultura.
Penso que é claro para todos que assistimos a um salto evolutivo no setor, quer do ponto de vista operacional (p.ex. tipo de culturas) quer do ponto de vista tecnológico. Mas ainda são pouco evidentes as ligações entre estes princípios ambientais e a prosperidade do setor; planeia-se sobretudo para o curto a médio prazo[2] e isso não é um bom ponto de partida para a gestão, quer dos recursos naturais (como a água) quer da gestão da pressão sobre os mesmos (como a aplicação de pesticidas ou a seleção das culturas), o que faz comprometer ainda mais os limites ambientais do território nacional (p.ex. as assimetrias em termos de disponibilidade de água em contexto de evolução crescente da escassez do recurso).
É fundamental trabalhar em tornar evidente a ligação entre esta gestão – fundamental – e os dividendos sociais e económicos que se podem extrair. Foi também por isso que iniciámos este mandato com um lema fundamental: “contas certas com o ambiente”. Isto significa que não se pode continuar com uma atitude de extrair, impactar, não prevenir ou poluir sem ter em conta os custos desses impactes no ambiente.
Quando se fala de gerir água na agricultura, por exemplo, também é gerir energia, fertilizantes, combustível, entre outros fatores de produção. É também gerir impactes ambientais. Felizmente, começam a emergir produtores que reconhecem, cada vez mais, as mais valias desta abordagem e de como, através da combinação entre tecnologia, inovação e métodos ancestrais/tradicionais de agricultura podemos regenerar e preservar, garantindo rendimento, sem exaurir ou degradar irremediavelmente. Ainda são muito poucos, mas será inevitável essa transformação – porque as condições do próprio sistema a isso nos irão conduzir.
Claro que tudo o que impacta na vertente económica tem uma forte resistência pelos interesses de cada setor, que receiam reduzir lucros e perder vantagens competitivas em relação a outras áreas geográficas que não têm que cumprir tantos requisitos ambientais, nem pagar o custo destes impactes no ambiente, mas é algo que tem de se enraizar, sob pena de terem de ser todos os outros cidadãos a pagar esse custo ambiental que o agente económico causa.
Essa procura por soluções mais sustentáveis tem de ser, por isso, em primeira instância encarada como um benefício para a própria sociedade e que o agente económico tem de encontrar de modo a mitigar os impactes ambientais e, por inerência, dos seus custos.
Em 2020, Portugal não cumpriu as metas de reciclagem indicadas pela União Europeia. Quais acha que foram os motivos para esta situação?
Tudo aponta para que de facto Portugal não tenha cumprido as metas definidas para 2020 no que à reciclagem se refere.
São vários os motivos que contribuíram para esta situação: por um lado, durante anos insistimos que o problema se resume ao cidadão que não separa, no município que não recolhe porta a porta, no sistema que não trata. Isso acabou por retirar a responsabilidade que também existe do lado da indústria, que não procura o material reciclado nem tem obrigações de reciclar (hoje, produzir uma garrafa PET em material plástico virgem custa 3 x menos que produzir a mesma garrafa em material PET reciclado). Obviamente que este contexto tem reflexos no cumprimento das metas de reciclagem porque a reciclagem, per si, é sobretudo regida por fatores de mercado.
Mas isso não quer dizer que não há nada a fazer do lado da recolha: quanto mais separados forem os materiais junto do ponto de produção, maior a qualidade material e maior a probabilidade de reciclagem. A pressão para diminuir custos nos serviços essenciais conduziu também, de certa forma, ao desinvestimento (social e económico) das autarquias nesta matéria: a ausência de contabilização dos benefícios indiretos associados a uma boa gestão de resíduos, a falta de responsabilização dos sistemas (quer em alta, quer em baixa) pelo cumprimento de metas, a estagnação em matéria de inovação, conduziu a que esta área seja vista como sendo apenas e só um custo, e que por isso que importa diminuir, ao invés de ser encarado como um serviço onde importa investir e criar valor.
Como poderemos garantir no futuro o cumprimento destas metas?
Num país cuja produtividade material é de 1,07€ por cada kg de material consumido, quando a média europeia é o dobro (valores de 2019); e num país em que a taxa de circularidade – substituição de matérias-primas por materiais recuperados – é das mais baixas da União Europeia (1,8 vs 11,2), é para nós claro que ainda há espaço para modelar o contexto nacional e direcionar o investimento privado e público para o desenvolvimento de soluções para esses desafios e nesse sentido cumprir os objetivos e metas estabelecidos a nível europeu.
Foi nesse sentido que promovemos a revisão profunda do Regime Geral de Gestão de Resíduos, do UNILEX e da lei dos aterros, no sentido de penalizar e, em alguns casos (p.ex. biorresíduos, materiais recicláveis) proibir a sua deposição final. Foram várias as medidas adotadas que visam modelar o contexto atual de forma a incentivar as mudanças estruturais necessárias.
No PNI 2030, estão cerca de 700 milhões de euros para a transformação do setor dos resíduos para um setor de recursos. Mas esta transformação não se pode confinar ao sistema que vai de nossa casa até à central de tratamento de resíduos urbanos: a indústria e o comércio têm de ser chamados à participação ativa, quer pela efetiva responsabilização pelo ciclo de vida dos seus produtos, quer pelo fato de que o cumprimento das metas de reciclagem também depende deles. Mesmo que um sistema fosse 100% eficaz na recolha de material de embalagem, a meta de reciclagem pode ficar aquém se os materiais não forem reutilizáveis ou recicláveis, e se não existir indústria que os recicle, e preferencialmente sem downcycling (obtenção de materiais ou produtos de valor inferior).
Em conclusão, não podemos, uma vez mais, atender ao curto prazo e esquecer o longo prazo, porque foi precisamente essa abordagem que nos colocou no ponto em que estamos. Por isso, para além daquilo que se exige ao Governo fazer, e aos agentes no sistema de gestão de resíduos atual - separar os materiais cada vez mais perto do cidadão para garantir qualidade dos fluxos, investindo em tecnologias de valorização para garantir qualidade de produtos comercializáveis – será preciso exigir mais compromisso do cidadão e das empresas.
Cada vez mais percebemos que a reciclagem não pode ser a única mudança social. É necessário reduzir o consumo, especialmente de produtos descartáveis. Como é que chegamos aos cidadãos e incutimos esta necessidade de mudança?
É um desafio gigantesco que, a meu ver, não se aborda apenas por via da educação ambiental – isto quando até produtos tecnológicos hoje são vendidos a preços tão baixos que são percecionados como descartáveis (p.ex. telemóveis a 20 euros) e tudo em nosso redor (publicidade até aos influenciadores nas redes sociais), direta ou indiretamente, nos empurra à compra.
A Diretiva sobre os Plásticos de Uso Único, as novas iniciativas europeias no Eco design e no Direito à Reparação, são tentativas de criar instrumentos mais efetivos, mas, mesmo assim, deixa margem no que à atuação sobre a “descartabilidade” diz respeito. E receio bem que jogamos num plano inclinado: por exemplo, a “Alliance to End Plastic Waste” comprometeu mil milhões de USD ao longo de cinco anos para iniciativas de limpeza do oceano e construção de instalações de reciclagem, mas, entretanto, a indústria está a investir 100 vezes mais em novas fábricas para produção de plástico[3].
Não podemos trabalhar apenas para a reciclagem, mas sim para a efetiva redução do consumo de matérias-primas e de energia. E isso irá implicar muito trabalho: de uma reflexão sobre aquilo que se tornou “normal” no nosso dia-a-dia simplesmente porque se criou uma necessidade onde antes ela não existia, e passou a “dar jeito” ou tornou-se um veículo de comunicação (p.ex. alguns brindes de plástico, sacos de plástico para o guarda chuva não pingar, fruta embalada individualmente), até perceber que é preciso internalizar os custos económicos dos impactos ambientais no preço dos materiais (p.ex. taxa de carbono).
A mudança não pode, por isso, visar apenas o cidadão ou apenas o resíduo. Senão vejamos:
• O consumidor não está presente quando o produto é apresentado embalado em três materiais diferentes;
• O consumidor não está presente quando a empresa opta por não usar materiais reciclados por ser mais caro;
• Mas o consumidor está presente quando o objetivo é vender – daí o empenho sobre os canais de comunicação e na forma como se comunica;
Há aqui uma mudança na arquitetura social e económica que é urgente ser feita para promover uma mudança de comportamentos de todos os intervenientes no ciclo de vida dos produtos, devendo cada elo da cadeia ser responsabilizado na medida do seu contributo potencial. Porque “ser sustentável” não pode ser apenas para alguns – para quem tem tempo de procurar e quem tem capacidade para comprar. Esse processo deve ser mais fácil - para quem produz, para quem vende e para todos que compram.
A lei que proibia a utilização dos plásticos descartáveis em restaurantes deveria ter sido implementada até setembro de 2020. No entanto, foi adiada a entrada em vigor até 31 de março de 2021, muito por causa das dificuldades que o sector atravessa devido à pandemia de Covid-19. Das informações que têm, conseguem perceber se a maioria dos restaurantes já estão em cumprimento?
Não temos informação que permita afirmar que a maioria dos estabelecimentos de restauração estejam já a assegurar o previsto na Lei 76/2019, contudo temos conhecimento de que grandes cadeias de restauração eliminaram o uso de loiça de plástico descartável ainda no ano transato.
De que forma esperam que esta lei dos descartáveis vá influenciar o país a longo prazo?
A Diretiva relativa aos plásticos de uso único estabelece a proibição de colocação no mercado dos produtos de plástico de uso único para os quais já existem alternativas sustentáveis, como pratos, talheres, palhinhas, a partir de 3 de julho de 2021.
Já as leis aprovadas pela Assembleia da República quanto à proibição do uso da loiça de plástico descartável na restauração e no comércio a retalho, veem acrescer ambição à referida Diretiva, na medida que estabelecem prazos a partir dos quais já não poderão ser utilizados e disponibilizados estes produtos nesses locais.
Estamos, no entanto, a falar de iniciativas com um âmbito limitado, que terão de ser complementadas com medidas que permitam reduzir o consumo de outros produtos descartáveis, tanto de plástico, como de outros materiais.
Que outras medidas têm atualmente a ser desenvolvidas, ou que tipo de planos têm em vista para o futuro no que toca à necessidade de colocar de lado os produtos descartáveis?
Este Governo tem prosseguido a implementação de políticas para a redução da produção e consumo de produtos descartáveis, independentemente do material de que são feitos, promovendo a transferência para sistemas de reutilização.
A este respeito, destaca-se a criação, na Lei do orçamento do Estado para 2021, de uma contribuição sobre as embalagens de plástico e de alumínio de utilização única em refeições prontas a consumir. Também na recente revisão do regime jurídico das embalagens, foram incluídas uma série de medidas com vista a contrariar a descartabilidade excessiva e promover a reutilização, destacando-se:
• A proibição da disponibilização gratuita de sacos de caixa de qualquer material; a obrigação das grandes superfícies comerciais destinarem áreas devidamente assinaladas dedicadas ao comércio de produtos a granel; e a obrigação do canal HORECA manter à disposição dos clientes um recipiente com água da torneira e copos para consumo no local;
• A obrigação dos estabelecimentos que forneçam refeições prontas a consumir, bem como os estabelecimentos de comércio a retalho que comercializam produtos a granel, aceitarem que os clientes levem a sua própria embalagem;
• A obrigação das bebidas destinadas a consumo no local, nos estabelecimentos HORECA, serem acondicionadas em embalagens reutilizáveis; e a obrigação dos distribuidores e retalhistas que comercializem bebidas em embalagens não reutilizáveis, disponibilizarem a mesma categoria em embalagens reutilizáveis.
• Metas de gestão relativas ao volume de bebidas colocadas no mercado em embalagens reutilizáveis, para 2025 e 2030, a definir no âmbito de instrumentos de autorregulação.
A propósito da utilização de máscaras descartáveis, por exemplo, o Ministério do Ambiente lançou a campanha “Não Deixes Cair a Máscara”, que incentivava ao uso de máscaras reutilizáveis. Qual foi a sua perceção do impacto da campanha no país?
A perceção do impacte da campanha no país foi positiva. A campanha foi disseminada em vários meios de comunicação, dos nacionais aos locais, na TV, digital e rádio, e estima-se que tenha atingido um potencial de 8,5 milhões de visualizações.
Dado que a campanha tinha como público-alvo preferencial a faixa etária mais jovem, optámos por uma campanha assente no digital, com website dedicado e conta de Instagram, tentando apelar ao uso de materiais reutilizável e, nos casos em que é necessário o uso de material descartável, como deve ser gerido – sempre no caixote do lixo, nunca no ecoponto e nunca no chão! O vídeo da campanha já teve mais de 114 mil visualizações, estimando-se um alcance de mais de 1 milhão de pessoas e quase 2,6 milhões de visualizações da campanha. Foram também produzidas máscaras especificas associadas à campanha, com designs exclusivos que disponibilizamos em regime de open source, para as instituições e empresas que se quisessem juntar a nós nesta ação, podendo ser comercializadas ou distribuídas por qualquer entidade interessada.
Trata-se de uma campanha que teve a companhia de outras campanhas (lembro-me da WWF), mas queremos acreditar que, em conjunto e em colaboração com outros organismos (como a DGS), tenhamos tido impacto entre o público-alvo, e melhorado o encaminhamento dos descartáveis e a utilização de materiais reutilizáveis.
Notou que a utilização de máscaras e luvas descartáveis devido à pandemia causou um retrocesso nas questões ambientais em Portugal?
A pandemia por COVID-19 teve impactes muito expressivos e rápidos no setor dos resíduos, quer ao nível da gestão, com alterações significativas nos modelos/procedimentos de recolha e tratamento, quer ao nível da prevenção de resíduos, em que se verificou um aumento significativo do recurso a materiais descartáveis, em particular luvas e máscaras.
O Ministério do Ambiente e da Ação Climática viu com alguma preocupação o modo como alguns setores económicos retomaram a sua atividade, não obstante os argumentos de saúde pública imporem precaução face ao desconhecido. Trabalhámos de modo a não permitir que essa lógica fosse aplicável para lá do que é suficiente para garantir a segurança dos cidadãos. As questões do ambiente dependem muito da massificação da mudança de comportamentos, que leva muito tempo a alcançar, mas temos seguido uma abordagem gradual de que “mais vale muitos a reciclar, ainda que de forma imperfeita, que poucos, de forma perfeita”.
As pessoas sentem-se cautelosas e procuram proteger a sua saúde da forma mais correta possível. Qual é o papel do governo na explicação de que uma máscara reutilizável mantém uma pessoa igualmente segura? Ou o papel do governo é apenas legislar, e a educação tem de ser feita por outras instituições?
A pandemia conduziu, sem dúvida, a que mais produtos descartáveis, de plástico e de outros materiais, fossem utilizados, mas é necessário atuar com as autoridades de saúde no sentido de desmistificar a necessidade de recorrer a produtos descartáveis para que a saúde pública seja assegurada e reforçar a principal regra de segurança: a prática de higienização.
A área governativa do ambiente, desde cedo na pandemia, procurou junto de outras áreas governativas garantir que se atuava de acordo à medida que a informação científica sobre a propagação do vírus ia sendo mais consistente, sobretudo no que aos materiais diz respeito. E, consequentemente, promovemos a revisão dos guias setoriais de retoma de atividade, em articulação com a área governativa da economia e diversas Organizações Não Governamentais de Ambiente; procurámos articular com a área governativa da educação sobre o uso de descartáveis em contexto escolar; e preparámos a campanha “Não Deixes Cair a Máscara” e também introduzimos essa componente na campanha “Info Praia” – estes foram alguns exemplos.
Portanto o papel do Governo não é apenas legislar, e o papel da área governativa do ambiente também é de informação e formação interna, digamos assim, chamando atenção para a necessidade de as várias áreas governativas, dentro do âmbito da sua ação, terem presente a transversalidade do tema da proteção ambiental.
Confrontados com os desafios diários nas suas áreas às quais se sobrepõem os desafios da pandemia, nem sempre é fácil, ou evidente, perceber as interligações entre áreas e ter uma visão e atuação sistémica a pensar no longo prazo. Mas é também para isso que cá estamos.
Os cidadãos mostram cada vez mais uma maior preocupação com as questões ambientais. Existem mais ativistas, mais comunidades agregadas em torno de alterações climáticas, e as pessoas pedem mudança – pedem novas legislações, e pedem que o governo se chegue à frente para tomar decisões sobre estes assuntos. Já não são apenas os cientistas, os estudiosos e profissionais da área a questionar e a pedir mudanças. Como é que vê esta exigência cada vez maior por parte dos cidadãos?
Vejo como algo positivo, é importante termos por parte dos cidadãos uma maior exigência, a começar pelas políticas do governo, certamente. Mas não devemos parar aí: é também importante ser exigente com os fabricantes, com o retalho, com as autarquias, até com os nossos familiares e amigos. Se calhar é mais fácil exigir do governo, mas a transformação mais permanente também se faz no nosso círculo de influência mais próximo.
Já tive discussões familiares quando prefiro remendar e mandar arranjar do que comprar novo, por exemplo. Porque se instituiu a ideia de que não vale a pena pôr um remendo ou joelheiras num par de calças quando se pode comprar uma peça nova a 15 euros, ou que isso só se faz em caso de necessidade. Aos dias de hoje, o estranho é dizer que não faz sentido nenhum deitar fora uma peça de roupa em condições só porque se rasgou no joelho. E aqui está uma das grandes questões onde o ativismo ambiental poderá certamente fazer a diferença, na promoção da mudança de perspetivas e comportamentos em torno dos nossos hábitos de consumo e não só.
E é curioso que há dados que parecem suportar esta visão: o Banco Europeu de Investimento realizou um inquérito[4] em que entre mudanças de comportamento, inovação tecnológica e legislação, 51% dos portugueses respondeu que é a mudança de comportamento individual o fator mais importante no combate às alterações climáticas – a percentagem mais elevada de toda a União Europeia.
Há uma tendência para menorizar o comportamento individual (p.ex. não usar palhinhas) versus a decisão política (p.ex. retirar subsídios aos combustíveis fosseis). Mas a verdade é que todos os contributos ajudam – quer os que vêm de cima, de âmbito mais alargado, como os pessoais, familiares ou locais. O que é importante perceber é que eles não são intermutáveis, ambos têm de ser promovidos e exigidos, de parte a parte.
Hoje sabe-se que o plástico não é o único fator causador de problemas ambientais. Existem outros temas a discutir, alguns com efeitos tão ou mais negativos que o efeito do plástico. Nos últimos 50 anos, a produção alimentar causou 70% da perda de biodiversidade em terra e 50% em água doce (dados ANP/WWF Portugal). Várias organizações e profissionais da área já vieram a público dizer que é necessária (e urgente) uma alteração na nossa dieta e na forma como produzimos alimentos. Sendo já portadores desta informação, qual é o caminho que temos de seguir daqui para a frente enquanto país?
O caminho que temos de fazer, e que já está a ser feito, é produzir e consumir de uma maneira diferente os nossos alimentos.
Portugal já está a dar os passos com vista à minimização desse problema, que tem outros associados nomeadamente a quantidade de desperdício produzido. De acordo com a FAO cerca de um terço dos alimentos produzidos anualmente para consumo humano no mundo, são perdidos ou desperdiçados, e para Portugal a estimativa, apresentada no projeto PERDA, cifra-se em 1 milhão de toneladas (17% da produção anual de alimentos, ou seja, perto de 96,8 kg per capita).
Portugal já tem uma estratégia nacional, liderada pelo Ministério da Agricultura, que tem como visão "combater o desperdício alimentar, uma responsabilidade partilhada do produtor ao consumidor", e que integra 3 objetivos estratégicos - Prevenir, Reduzir e Monitorizar - estando definidas no respetivo Plano de Ação 14 medidas direcionadas para o combate ao desperdício alimentar desenvolvidos a partir do trabalho das várias entidades que compõem a Comissão Nacional Contra o Desperdício Alimentar.
A nível da legislação de resíduos, recentemente aprovada e que produzirá efeitos a partir de julho do presente ano, foram introduzidas algumas medidas com vista a reduzir os resíduos alimentares dos quais se destacam a obrigação das atividades de restauração e industrial, em separar na origem os biorresíduos produzidos, e adotar medidas de combate ao desperdício alimentar. A partir de 2024 passará a ser proibido aos supermercados e restaurantes deitar bens alimentares ainda consumíveis para o lixo.
Em julho de 2020, surgiu uma campanha em Portugal, Espanha e França, co-financiada pela União Europeia, com o slogan “Let’s Talk About Pork from Europe”. O foco da campanha era incentivar jovens (a campanha foi distribuída em meios de comunicação maioritariamente frequentados por jovens, como a plataforma Spotify) a consumir carne de porco da Europa. Num momento em que existem cada vez mais estudos que apontam para a necessidade de uma dieta com mais recurso a ingredientes de origem vegetal, as redes sociais foram palco de muitos ativistas e muitas comunidades vegan que se vieram mostrar indignados com a forma como a campanha foi apresentada. Em termos governamentais, este feedback chegou até vocês? Como é que o governo olhou para a situação?
Primeiro, creio que também deveríamos questionar a publicidade a que estamos diariamente sujeitos para comprarmos carros, roupas, chocolates, telemóveis ou eletrodomésticos. Por exemplo, há dados[5] que apontam para a produção de 17 a 19kg CO2eq por cada kg de chocolate ou café que é produzido (para a carne de porco são 7kg CO2eq). Não quero com isto dizer que as mudanças alimentares não são necessárias como parte da mudança comportamental que é preciso fazer. Mas é importante não perder de vista a abordagem sistémica que é necessária uma vez que o sistema alimentar é responsável por 1/3 das emissões antropogénicas a nível mundial[6].
A pecuária é uma atividade económica, com importância social e económica, mas tem de operar respeitando os limites do sistema natural em que se insere (lá está, contas certas com o ambiente) e para isso é preciso investimento, e uma visão de longo prazo, equilibrada, por parte das empresas.
Acontece que se instituiu, de certa forma, o discurso de que as exigências ambientais são limitadoras, que prejudicam o negócio e a competitividade, que inibe o crescimento e o emprego: “mais uma diretiva, mais uma lei, com mais um Valor Limite de Emissão, mais uma taxa, mais um custo de contexto.” Mas existem condições limite que têm de ser respeitadas, porque de outra maneira estamos a passar custos que deviam ser privados (parte das contas do negócio) para a sociedade.
Se uma atividade económica quer operar e ser sustentável a longo prazo tem de internalizar todos os custos ambientais (e de escassez no caso específico da água). São parte da sua atividade e devem ser responsáveis pelos mesmos; e, nalguns casos, até podem ser uma mais-valia para o seu negócio. Caso não o faça, o Estado tem de intervir (e está a intervir), na defesa de um direito constitucional: o direito à qualidade do ambiente em que vivemos. E é esse o passo que falta a grande parte das empresas no país.
Num país em que o setor da suinicultura contribui com um volume de negócios superior a mil milhões de euros para o produto interno bruto, e emprega mais de 50 mil trabalhadores, como é que se gerem as expetativas da comunidade, e dos cidadãos, que estão cada vez mais preocupados com estas questões, e, ao mesmo tempo, se evitam graves transtornos na economia?
Exatamente com o equilíbrio que falei, e que constitui a base da Estratégia que desenhámos com o Ministério da Agricultura (ENEAPAI 2030); reconhecendo a importância económica da atividade suinícola, mas sabendo que persistem problemas ambientais graves em algumas regiões do país e que têm mesmo de ser resolvidos.
Olhamos para a resolução destes casos (que a todos nos devem envergonhar) não apenas como um benefício ambiental (do ponto de vista clássico, da proteção dos nossos recursos, como a água ou os solos); mas sobretudo como uma questão de desenvolvimento económico e de justiça social.
Com uma pressão cada vez mais elevada sobre o recurso água e com a agitação das comunidades, pela afetação na sua qualidade de vida, não se pode continuar a deixar que aqueles que cumprem com as boas regras de gestão e tratamento, e que, como qualquer indústria, compreendem que esse investimento também valoriza o seu produto, possam ser onerados por aqueles que, reiteradamente, gerem e tratam de modo incorreto.
O caso das suiniculturas é um exemplo claro enquanto problemática ambiental muito bem identificada no país, entre outras relacionadas com a gestão dos efluentes produzidos. Os produtores têm um recurso que não estão a valorizar e estão, na verdade, a penalizar outro setor (o doméstico) e a população portuguesa em geral quando, na verdade, há um fluxo do qual ainda seriam capazes de extrair valor. Isto num contexto de bioeconomia – que o Ministério do Ambiente também está a trabalhar -, é muito importante.
Acho que estamos claramente a caminhar para uma abordagem em que os produtores deste tipo de efluentes, seja no têxtil, cerâmica, suiniculturas, no ciclo urbano (com as lamas de ETAR), irão alterar a maneira como olham para esses efluentes: não como algo de que me quero livrar, mas algo que quero tratar porque ainda posso extrair materiais valorizáveis.
A tecnologia já está claramente a responder a isso, tendo havido um salto substancial nesse tipo de nicho de negócio. Acho que muito rapidamente esta realidade se vai inverter, tendo em conta tudo o que se está a desenhar em termos de apoios, por exemplo, para a produção de gases renováveis, para descarbonizar a rede de gás natural. Por outro lado, e como temos regiões do país deficitárias em nutrientes, poderíamos deixar de ter de importar fertilizantes vindos do exterior, deixamos de estar dependentes desse influxo de materiais e de recursos, o que constituiria uma mais-valia para os produtores e para o país.
Tudo isto se está a conjugar de uma maneira, creio eu, muito virtuosa e que é capaz de se autoalimentar. Acho que estamos a caminhar muito rapidamente para essa visão. Obviamente que tudo isto assenta em algo incontornável, o cumprimento da Lei e dos princípios basilares da lei da água, mormente o princípio do poluidor-pagador. Tudo começa aí, na verdade. É disto que falamos quando dizemos que as contas certas também se fazem com o ambiente.
Entre janeiro e junho de 2021, Portugal vai presidir ao Conselho da União Europeia. Uma das prioridades deste Conselho, de acordo com o programa, é assegurar uma transição e uma sociedade mais “verde”. Quais são os focos ambientais do nosso país nesta questão de transição? O que está de facto a ser implementado, e discutido, e quais as alterações que esperamos ver no final da nossa presidência?
Portugal assumiu a presidência do Conselho da União Europeia num contexto particularmente desafiante em que as políticas não podem deixar de estar associadas a medidas de proteção da saúde e de recuperação económica e social em virtude da situação de pandemia de COVID-19. Neste quadro, Portugal adotou como tema da sua presidência o mote “Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital”. Esta visão tem tradução nas prioridades identificadas para a Presidência Portuguesa da União Europeia (PPUE) em matéria de ambiente: a ação climática, a economia circular, a poluição zero, a biodiversidade, e os dossiês transversais.
No âmbito de iniciativas concretas da PPUE, sublinha-se a importância da negociação com o Parlamento Europeu com vista à aprovação da Lei Europeia do Clima, um instrumento ambicioso que visa afirmar a União Europeia como líder na ação climática, comprometendo-a com os objetivos assumidos no Acordo de Paris. A proposta de Lei Europeia do Clima estabelece uma meta de redução de emissões de pelo menos 55% até 2030.
Merece igualmente destaque a proposta de regulamento relativo às baterias apresentado pela Comissão Europeia, e que é nosso ensejo levar o mais longe possível durante a nossa presidência. Trata-se de um regulamento inovador no quadro jurídico da União Europeia, incidindo sobre todo o ciclo de vida das baterias, desde a extração das matérias primas até à gestão dos resíduos resultantes, de preferência valorizando os materiais para a produção de novas baterias. Além da importância desta primeira iniciativa circular, esta é especialmente oportuna pela crescente importância das baterias, desde logo na mobilidade elétrica que tem conhecido enorme expansão, mas também na eletrificação de outros consumos e na transição para fontes de energia renováveis, para o que são necessárias soluções de armazenamento de energia. O novo quadro legal relativo às baterias tem o potencial de contribuir para desenvolver na europa uma fileira de produção e reciclagem de baterias, contribuindo para a transição energética e para a promoção da indústria europeia.
Noutra esfera, a PPUE já alcançou este mês um consenso e a aprovação de conclusões pelo Conselho relativamente à Estratégia para os Produtos Químicos num Contexto de Sustentabilidade. Esta Estratégia orienta, com um horizonte de longo prazo, a política da União relativamente aos produtos químicos, norteada pelos objetivos de alcançar um ambiente livre de tóxicos, um nível mais elevado de proteção da saúde humana e do ambiente, e uma indústria química competitiva.
Naturalmente que os objetivos da PPUE em matéria de ambiente não existem dissociados de outras dimensões, pelo que também se destacaria a promoção de exigências de sustentabilidade e circularidade em sede dos instrumentos financeiros da União Europeia, não só o Quadro Financeiro Plurianual, que dedica 30% do seu orçamento à ação climática, mas também o Mecanismo de Recuperação e Resiliência, no âmbito do qual 37% dos fundos serão atribuídos a iniciativas relacionadas com a transição climática e 20% a iniciativas relacionadas com a transição digital.
Finalmente, e ainda falando de dimensões próximas da ambiental, cumpre referir iniciativas na área da energia, incluindo a revisão do Regulamento das Redes Transeuropeias de Energia (TEN-E), com o propósito de alinhar as politicas relativas às infraestruturas energéticas com as metas de clima e energia para 2030; a “Vaga de Renovação”, que tem por objetivo melhorar a eficiência energética, circularidade e desempenho ambiental de edifícios alvo de renovação; e ainda o objetivo de promover a troca de pontos de vista dos Estados Membros a respeito da Estratégia Europeia para o Hidrogénio.
A primeira coisa que lhe vem à cabeça quando pensa em...
- Ambiente? Responsabilidade
- A maior paixão? Escrever
- O maior receio? Não conseguir
- O que me move? Contas certas com o Ambiente
- A minha inspiração? A família e a equipa que me acompanha
- Um sentimento? Paz
- Um livro? (Podem ser dois?) Human Kind: a hopeful story, Rutger Bregman | The Overstory, Richard Powers
- Um filme? Recente? A Sabedoria do Polvo (Star Wars e Senhor dos Anéis, para sempre!)
- Uma viagem? Nova Zelândia
- 2020? Para a história
- 2021? A oportunidade
- Futuro? Disruptivo
[1] https://ec.europa.eu/jrc/en/publication/thematic-reports/tracking-eu-citizens-interest-ec-priorities-using-online-search-data-european-green-deal
[2] Ver “O Uso da Água em Portugal: olhar, compreender e atuar com os protagonistas chave”, Fundação Calouste Gulbenkian, 2021;
[3] https://www.reuters.com/investigates/special-report/health-coronavirus-plastic-recycling/
[4] https://www.eib.org/en/surveys/climate-survey/3rd-climate-survey/index.htm
[5] https://www.visualcapitalist.com/visualising-the-greenhouse-gas-impact-of-each-food/
[6] https://www.nature.com/articles/s43016-021-00225-9
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