"O lixo que encontramos é chocante"

"O lixo que encontramos é chocante"

 

Lídia e Manuel Nascimento são um casal de Santa Cruz (Torres Vedras), que há vários anos recolhe lixo nas praias do concelho, lutando pela consciencialização para um mar mais limpo e seguro. Em 2019, criaram a página “Mar à Deriva - Adrift Sea” nas redes sociais, onde partilham conteúdos do lixo que encontram, de forma a sensibilizar as pessoas para a necessidade de fazer algo.

 

Apesar de a página do Mar à Deriva nas redes sociais ter sido criada apenas em 2019, a verdade é que já se empenham em apanhar lixo marinho há muito tempo. Quando é que surgiu esta vossa vocação e se iniciou o projeto Mar à Deriva? Como é que nasceu e qual foi a inspiração?

O que nos motivou a recolher lixo marinho foi termos a consciência de que esse lixo era mau para o meio ambiente, destruindo habitats e matando animais marinhos. Eu (Lídia) recolho lixo marinho desde os 9 anos e o Manuel desde que nos conhecemos, portanto, juntos apanhamos lixo marinho há cerca de 28 anos. Em 2019 criámos o projeto Mar à Deriva, pois passámos a encontrar muito mais lixo do que anteriormente, ou seja, quase todas as marés passaram a deixar lixo nos areais e nas rochas. O nosso objetivo ao criar o projeto Mar à Deriva foi mostrar às outras pessoas o que se estava a passar, a gravidade do problema do plástico no oceano, pois nem todas as pessoas têm oportunidade de ver, e só conhecendo a realidade se pode mudar comportamentos e tomar decisões informadas.

 

Sempre tiveram preocupações ambientais, ou foi algo que despertou devido a alguma situação em particular?

Sempre tivemos preocupações ambientais, no entanto, na sociedade atual é muito difícil ser perfeito a esse nível. Nós próprios continuamos a cometer muitos erros no dia a dia, uns inconscientemente, outros conscientemente, quer por falta de tempo, quer por falta de opções fáceis ou práticas. Mas se as pessoas mudarem alguns comportamentos, como passar a consumir menos, evitar utilizar plásticos de uso único e tentar reutilizar tudo o que se conseguir, já causa algum impacto positivo no meio ambiente.

 

A partir do momento em que criaram a vossa presença nas redes sociais, qual foi o vosso objetivo? E qual o feedback que costumam ter através das vossas partilhas no Facebook e Instagram?

O nosso principal objetivo é mostrar a realidade do que se está a passar, este gravíssimo problema do plástico no mar, para que haja uma alteração de comportamentos. O feedback não podia ser mais positivo! Todos os dias recebemos mensagens a dizer que “somos um exemplo e uma inspiração”, e essa inspiração traduz-se em ações. Muitas pessoas também passaram a recolher lixo, não só nas praias, mas em todos os sítios, pois, infelizmente, há lixo em todo o lado, e enviam-nos fotografias do lixo que recolhem. Defendemos que qualquer cidadão pode fazer a diferença e que o mais importante não é muitas pessoas se reunirem para apanhar lixo de vez em quando num único sítio, mas sim que qualquer pessoa recolha o lixo que conseguir nos sítios onde vai, pois muitos sítios pequenos fazem um grande território.

 

Da vossa experiência, quando é que o problema do lixo marinho começou a ser verdadeiramente incomportável, para terem decidido arregaçar as mangas e pôr mãos à obra?

Foi especialmente no início de 2019, pois passou a surgir muito mais lixo, com maior frequência e em maior quantidade. 

 

Fazem muitas recolhas de lixo pelo concelho de Torres Vedras: ao longo dos anos, notam uma diferença na quantidade de lixo que se encontra (seja uma diferença positiva ou negativa)?

Notamos uma diferença sim, uma positiva e outra negativa. Em comparação com os anos 1980, por exemplo, atualmente no concelho de Torres Vedras os banhistas quase não deixam lixo na praia, ao contrário do que acontecia anteriormente. A diferença negativa, muito negativa mesmo, é o lixo que passou a surgir derivado da pesca profissional, tanto restos de artes de pesca, como de embalagens de tudo o que se consome a bordo dos barcos.   

 

As vossas atividades são maioritariamente focadas na recolha de lixo. Estendem esta atividade a quem vos acompanha, de forma a participarem nestas recolhas convosco? Ou é algo mais solitário, e incentivam aos vossos seguidores que depois possam organizar as suas próprias recolhas?

Uma vez que quando não estamos a trabalhar, estamos na praia, pois é onde passamos o nosso tempo livre, quer para surfar, quer para usufruir do contacto com o mar, acaba por ser uma atividade que fazemos principalmente a dois. Quando alguém nos vê a recolher lixo e nos quer ajudar, é muito bem-vindo. Por vezes também informamos antecipadamente onde vamos estar, para o caso de alguém querer aparecer e ajudar, mas devido à pandemia só o temos feito raramente. De qualquer forma, para nós o mais importante é cada um fazer o que pode no local onde se encontra.

 

Sentem que tem havido uma mudança positiva de comportamentos por parte das pessoas, ou ainda há um grande caminho a percorrer?

Ainda há um longo caminho a percorrer, mas há cada vez mais pessoas conscientes do problema e a arregaçar as mangas. E não se trata apenas de recolher lixo, trata-se também de fazer com que não haja tanto lixo com hipótese de chegar ao mar.

 

Quais são os objetos que encontram mais frequentemente na praia? E quais foram os objetos que encontraram que mais vos chocaram? Há muito lixo com origem de outros países?

Os objetos que encontramos mais frequentemente nos sítios onde vamos são restos de artes de pesca (cerca de 90%). Todo o lixo que encontramos é chocante, pois não deveria estar ali, mas o que mais nos choca é quando encontramos um animal marinho arrojado e a causa de morte é visível, pois já encontrámos muitos ainda com o plástico que os matou. Um dos “achados” que mais nos chocou foi encontrar aquilo a que chamámos “Cápsula do Tempo”, muito lixo dos anos 1980 concentrado no mesmo local. O chocante foi esse lixo estar enterrado na areia desde 1986 e, em 2020, quando o encontrámos, quase não ter sofrido degradação.

Também apanhamos muito lixo proveniente de outros países, como restos de armadilhas e braçadeiras da pesca da lagosta nos EUA e Canadá (vêm a navegar através do giro do Atlântico Norte), bem como embalagens da Turquia, Indonésia, Coreia, etc. No entanto, este lixo não vem com as correntes do sítio de origem, sendo deitado fora por barcos.

 

Em termos da origem do lixo marinho que vão encontrando e apanhando, qual a principal fonte? Isto é, sentem que chega à orla costeira através do mar, ou antes através dos rios, dos pescadores, ou da mão humana de quem frequenta as praias?

Tudo isso contribui para surgir lixo na praia. Quando há inundações, por exemplo, encontra-se muito lixo proveniente dos rios, mas o habitual é encontrarmos lixo que o mar deixou na praia, ou nas rochas, especialmente proveniente da atividade piscatória.

 

Um achado que alavancou bastante o vosso trabalho e o projeto Mar à Deriva foi o lixo dos anos 80 que encontraram numa praia em Peniche. Como é que isto aconteceu?

Isso aconteceu no dia 19 de julho de 2020. Estávamos a recolher lixo na zona de transição entre a praia e as dunas em Peniche de Cima. É uma zona onde há muito lixo enterrado, incluindo lixo com muitos anos. É habitual encontrarmos aí pedaços de crude e lixo envolto em crude, aquilo a que chamávamos “alcatrão” e que ficava pegado aos pés e às toalhas quando íamos à praia. O Manuel puxou um saco de plástico, que estava um pouco enterrado, como é habitual, mas atrás do saco veio uma embalagem de iogurte, e outra, e outra. Continuou a retirar areia, pois não paravam de surgir objetos, como garrafas, embalagens de iogurte, embalagens de cremes e bronzeadores, etc. Num espaço inferior a um metro quadrado encontrámos mais de cem embalagens de iogurte e muito outro lixo, que pelas validades ainda visíveis, deduzimos que tivesse sido ali enterrado em 1986.

 

Muito do lixo que se encontra nas praias já está contaminado, e isso dificulta a sua reciclagem. Por esse motivo, que finalidade dão ao lixo que encontram nas praias? Vai apenas para o lixo comum ou ainda conseguem dar-lhe outros usos de alguma forma?

A maior parte do lixo que recolhemos já não tem qualidade para ser reciclado, pois andou algum tempo no mar e está contaminado. O lixo “fresco”, como garrafas de plástico que são deixadas na praia há pouco tempo, colocamos no ecoponto amarelo. Tentamos reutilizar algum lixo, transformando-o em peças úteis, como é o caso dos alcatruzes (armadilhas para polvos), que transformamos em cinzeiros e colocamos junto às praias, ou fazendo peças que sirvam para sensibilizar para este problema. Mas, infelizmente, a maior parte do lixo vai para o contentor do lixo indiferenciado.  

 

Quais são as vossas maiores inspirações no mundo da sustentabilidade?

Apesar de não ser muito conhecida pelo cidadão comum, a nossa maior inspiração é a bióloga marinha e exploradora Sylvia Earl, e, claro, o naturalista David Attenborough, que quase todas as pessoas conhecem.

 

Quais são os vossos objetivos para o futuro deste projeto?

Pretendemos continuar a fazer tudo o que fizemos até aqui. Vamos continuar a recolher lixo pois, na nossa opinião, é a melhor forma de mostrar a realidade. Como se costuma dizer, “uma imagem vale mais que mil palavras”. Vamos também continuar a fazer todo o trabalho que temos feito nos bastidores pois, para além das ações de recolha de lixo, há muito trabalho a nível de comunicações e e-mails para as entidades competentes, decisores políticos, empresariais, etc. Temos tido alguns resultados a esse nível, mas é tudo muito lento e a resolução deste problema é urgente, pelo que é necessário insistir e persistir.

 

Acham que o poder para a grande mudança está na mão do cidadão comum, do governo ou de ambos?

Para nós, está nas mãos de três partes da sociedade: o cidadão comum, através das suas escolhas e alteração de comportamentos, do governo, através da criação de leis que não existam apenas no papel, mas que sejam efetivamente postas em prática, e da comunicação social, pois é através da informação para as massas que se consegue mostrar a realidade e “forçar” uma alteração de comportamentos, quer do cidadão comum, quer do governo, quer dos grandes empresários.

 

E os principais causadores para esta problemática do lixo marinho, quem sentem que são?

A culpa disto é de todos nós, não existe apenas um culpado. Tem sido o conjunto das ações de todos nós que tem levado a que este problema seja cada vez mais grave. Os grandes produtores, que só visam o lucro, sem se importarem com o prejuízo que estão a causar à biodiversidade; os consumidores, pois se não houvesse procura deixaria de haver oferta; as pessoas que descartam o lixo na natureza; as atividades profissionais poluentes, que não tentam mitigar os efeitos das suas atividades; os decisores políticos, que demonstram alguma falta de coragem para impor medidas que, reconhecemos, podem ser algo impopulares, mas que são absolutamente necessárias para o futuro de todos nós; e a lista continua... Todos os seres humanos têm alguma culpa e todos têm algum poder para alterar esta situação.

 

Que mudanças acreditam que deveriam acontecer para assegurar que há um futuro para as gerações vindouras?

A nossa preocupação é exatamente as gerações vindouras. A nossa geração usufruiu de tantas coisas boas da natureza, acabando por a deteriorar, maioritariamente por falta de conhecimento. Mas agora há conhecimento, só não fazemos melhor se não quisermos e são as gerações vindouras, não só dos seres humanos, mas de todos os seres vivos, dos quais os próprios seres humanos dependem, que vão sofrer mais com este problema que nós causámos. Acreditamos que as gerações vindouras vão fazer muito melhor, estão muito mais conscientes do que nós mas, para já, temos de as ajudar, temos de arregaçar as mangas. Caso contrário, não vão ter nada para salvar.

 

Há algum apelo que queiram deixar, seja ao cidadão comum ou às entidades decisoras?

O apelo que queremos deixar ao cidadão comum é para cada pessoa tentar consumir só o que é necessário, evitar o plástico de uso único e fazer as escolhas mais acertadas, na medida do possível. Às entidades decisoras é, basicamente, para tomarem decisões, decisões essas que não existam apenas no papel, mas que sejam postas em práticas.

Uma vez que a maior parte do lixo marinho que recolhemos é proveniente da pesca, e uma boa parte dele é esferovite, gostávamos que fosse proibida a utilização de esferovite no mar, sendo substituída por cortiça nacional, o que seria bom para o ambiente, mas também para a economia. É claro que isto seria uma grande despesa para os pescadores, mas existem fundos para proteger o ambiente, que poderiam apoiar esta mudança. Uma vez que temos conhecimento direto que alguns barcos chegam a terra sem lixo, alguns depois de andarem mais de um mês à pesca no mar (para onde foi o lixo que produziram durante esse tempo?), um outro aspeto a ser implementado imediatamente seria, se não descarregam o lixo que produziram, também não podem descarregar o peixe.

 

Sentem que há esperança para um mundo livre de plástico para os vossos filhos e para as gerações vindouras? 

O plástico veio para ficar, e nalguns setores é muito útil, como nos hospitais, por exemplo. A esperança que temos é que no futuro se deixe de utilizar todo o plástico desnecessário, pois é esse que está a causar este gravíssimo problema.

 

A primeira coisa que vos vem à cabeça quando pensam em...

- Mar à Deriva?
Lídia: Com tanto lixo à deriva no mar, agora é o mar que está à deriva, sem rumo, nem futuro
Manuel: Nunca desistir

- A maior paixão?
Lídia: A maior, sem dúvida alguma, os meus filhos e o meu marido, a seguir, o mar
Manuel: Os meus filhos, a minha mulher e a tranquilidade da natureza

- O maior receio?
Lídia: Que as pessoas não compreendam a tempo que, se acabarmos com a biodiversidade, também acabamos com a vida dos seres humanos
Manuel: Deixar de ter força para lutar contra este problema

- O que vos move?
Lídia: O que me move são os seres marinhos que estão a sofrer, sem culpa do que estamos a fazer. Se conseguir salvar nem que seja um ser marinho, todo o esforço valeu a pena
Manuel: Amar a vida e a sua harmonia

- A vossa inspiração?
Lídia: A minha inspiração foi observar desde pequena a relação existente entre as algas e os camarões, os peixes, etc. Uma poça de água nas rochas tem um conjunto de vida, pois os seres dependem uns dos outros. Não há uma poça apenas com camarões, ou apenas com peixinhos, ou apenas com uma espécie. As espécies dependem umas das outras e nós também dependemos das outras espécies
Manuel:  Tudo o que nos rodeia, seja bom ou mau. Se for bom, tentar fazer melhor. Se for mau, tentar corrigir para transformar em algo de bom

- Um sentimento?
Lídia: Amor, só com amor pela vida vamos conseguir manter a vida, a nossa e a das outras espécies.
Manuel: Ser feliz e fazer feliz quem me rodeia porque quando damos felicidade tudo brilha como um dia cheio de sol

- Um livro?
Lídia: Fernão Capelo Gaivota (a vida é muito mais do que apenas comer, dormir, trabalhar…)
Manuel: Não tenho nenhum preferido

- Um filme?
Lídia: A Idade do Gelo
Manuel: O Pátio das Cantigas (Evaristo)

- Uma viagem?
Lídia: Das realizadas, São Miguel, Açores; de sonho, Nova Zelândia
Manuel: Das realizadas, Açores e Mundaka; por realizar, um dia conhecer muitos lugares e muitas culturas para tentar ver e perceber a vida humana

- 2020?
Lídia: Um ano diferente, que nunca esperei viver devido a uma pandemia. Apesar de todos os aspetos muito maus, houve um que pessoalmente foi positivo, devido a trabalhar algum tempo a partir de casa, tive mais disponibilidade para concretizar algumas tarefas que iam ficando sempre “na gaveta” por falta de tempo. Também me parece que foi o ano em que finalmente as pessoas em geral começaram a despertar para a questão da poluição ambiental.
Manuel:  Apesar desta pandemia, foi um ano cheio de coisas novas, uma delas tempo para pensar como estamos a viver neste planeta e como o estamos a tratar

- 2021?
Lídia: Por enquanto, semelhante a 2020.
Manuel: Continuar a viver com os mesmos princípios, amar o que me rodeia

- Futuro?
Lídia: Tenho esperança de que o futuro seja melhor, tenho muita esperança nas futuras gerações. Estou convicta que vão fazer muito melhor
Manuel: Não sei, mas espero que traga mudanças na nossa maneira de tratar o planeta