"Quando o consumidor exige preço barato, tem de perceber que não vai ter qualidade nunca"

"Quando o consumidor exige preço barato, tem de perceber que não vai ter qualidade nunca"

 

Luísa Almeida é a fundadora da Quinta do Arneiro. Estivemos à conversa com ela e falámos sobre a história da Quinta do Arneiro, as vantagens e desvantagens do modo de produção biológico, o tipo de consumidor dos produtos orgânicos, a importância de comer produtos da época e muito mais.

 

A Quinta do Arneiro é um projeto familiar, que já está na sua família desde o tempo do seu pai. Como tem sido a evolução da quinta até aos dias de hoje?

O meu pai comprou a quinta em 1967. Na altura era uma quinta onde os donos vinham nas férias e davam emprego a uns caseiros, sendo uma coisa meio abandonada. Até chovia dentro de casa!

O meu pai esteve muitos anos no Brasil e, quando voltou, comprou a quinta, até porque o meu avô tinha comprado uma quinta aqui perto também. Depois começou a fazer obras, a arrancar as vinhas, porque a quinta tinha vinhas velhas, e começou a pôr pomares de pêra. E assim foi reconstruindo tudo (isto nos anos 70, princípio dos anos 80).

Entretanto, a quinta ficou toda com produção de pêra e assim foi durante muitos anos. Ainda tivemos algumas variedades diferentes, mas depois acabámos por nos focar só em Pêra Rocha. E durante muitos anos, até 2007, a Quinta do Arneiro foi uma quinta de mono-produção de Pêra Rocha. Nos anos 80, este era um negócio muito bom, ganhava-se bastante dinheiro. Infelizmente, depois começou a decair e foi decaindo até aos dias de hoje.

Falando da minha relação com a quinta, eu nunca gostei de agricultura. O meu pai sempre tentou que eu fosse para Agronomia e eu não fui, pois era uma área que não me dizia mesmo nada. O pouco que sabia era porque vinha para a quinta nas férias. Para mim, enquanto adolescente, era uma seca ter de passar aqui as férias. A única altura gira era a altura da apanha da pêra porque tinha movimento, havia muita gente e era malta nova, então eu achava graça. Era a altura excitante do ano.

Quando casei, vim para cá viver, mas também continuava a não sentir qualquer apelo do campo. Na verdade, nessa altura abri a Index em Torres Vedras, uma livraria que tive durante 14 anos! Quando finalmente resolvi tomar conta da quinta, o meu pensamento para mudar isto não foi muito numa perspetiva ecológica, porque na altura, sinceramente, não tinha muita sensibilidade para isso. Foi mesmo porque via que o agricultor era muito explorado e que as pessoas trabalhavam o ano inteiro para, no fim, receberem apenas aquilo que quem lhes compravam a fruta queriam pagar.

Não havia preço para a pêra! Cada ano que passava era pior... As pessoas só passado um ano é que sabiam quanto é que a pêra tinha valido. E cada ano que passava, pediam cada vez mais ao agricultor: a pêra só podia ser de calibre grande, se se mandasse para fora dos calibres ainda se era penalizado por cima... Enfim, era surreal!

Aquilo fazia-me imensa confusão e eu comecei a pensar em mudar numa perspetiva mais económica e de independência. Não estar dependente desses grandes revendedores era o grande objetivo. E foi aí que depois pensei em fazer agricultura biológica. Claro que neste momento já não é só isso. Para mim, agora já não faz sentido ver a agricultura de outra forma. Tudo isto é matéria viva, não é? Vivemos a trabalhar com seres e isso faz-nos pensar de maneira diferente, a começar a aprender e a ter outra sensibilidade que não tinha, porque não estava cá todos os dias. E foi assim que começou a Quinta do Arneiro na sua era biológica.

 

Como se processou a mudança da monocultura da Pera Rocha para uma produção de hortícolas em modo biológico?

Também foi devagarinho. Começou por ser um hectare, porque eu também não sabia nada de horticultura.

Em 2007-2009, que foi quando nós começámos com esta mudança, não se falava de agricultura biológica. E não foi assim há tantos anos! Na verdade, eu era gozada por falar em agricultura biológica nessa altura. Infelizmente, tenho a certeza de que fui gozada por muita gente. Mas eu queria avançar na mesma!

Nessa altura tinha cá na quinta dois gémeos - o Chico e o João - e eles, apesar de não saberem nada sobre agricultura biológica, tinham conhecimentos de horticultura que eu não tinha: eles sabiam os compassos, como é que se plantava, o sistema de rega... Assim, eles acabaram por fazer a mudança da Quinta do Arneiro para o modo de produção biológico. Contrariados, mas fizeram!

Depois, a parte dos tratamentos e de outras situações mais específicas, fui aprendendo. Com muitos problemas a acontecerem, muito stress e muitas dores de cabeça. Mas isso é normal, porque quando uma pessoa sabe menos, há mais stress. E também porque o equilíbrio se começa a criar com o passar do tempo. Há coisas que se tornam mais fáceis quando já há mais equilíbrio. Nós sentimos que temos muito mais equilíbrio agora no nosso ecossistema. Está muito mais equilibrado com estes 10-12 anos de práticas diferentes. 

Depois, devagarinho, fomos também aumentando a área em modo de produção biológico. Deixámos de usar herbicidas, fizemos adequações químicas, mas continuávamos a fazer alguns tratamentos. Todos os anos fomos aumentando um bocadinho e, a partir de setembro de 2022, toda a quinta vai estar em produção biológica.

 

Na agricultura biológica, as perdas acabam por ser maiores do que na agricultura convencional? Como é feito o controlo de pragas no modo de produção biológico?

Na produção biológica, o tempo das culturas é diferente. As coisas demoram mais tempo a crescer, portanto, logo aí temos um custo acrescido porque temos de esperar mais tempo. Não se força, não se rega com adubo todos os dias para as coisas crescerem rápido. Temos de esperar que as coisas cresçam no seu ritmo natural.

Ainda agora, com este calor todo que houve, temos o nosso morangal a morrer, enquanto no ano passado tivemos morangos até setembro ou outubro. Os morangos são a nossa produção principal no verão e este ano estamos em princípio de agosto e não sei até quando vamos ter morangos, porque está tudo a morrer! Provavelmente, se estivéssemos em agricultura convencional, podíamos usar qualquer coisa para ajudar as plantas a resistir ao calor, mas enquanto agricultura biológica, não temos nada para fazer. Já houve dois anos em que praticamente não tivemos morangos, porque o morangal morreu todo logo ao princípio.

Eu comparo muito a agricultura convencional e agricultura biológica com a medicina convencional e a Naturopatia. Se a pessoa tiver uma infeção grave, se calhar tem mesmo de tomar um antibiótico. Mas na agricultura biológica aqui não temos antibiótico. Estamos a dar chás e a rezar para que resultem, mas há coisas que resultam e outras não. Mas claro que também se essa pessoa estiver mais equilibrada, também ficam menos doente, não é? Provavelmente não vamos adoecer tantas vezes ou de forma tão grave como uma pessoa que não está equilibrada. É a mesma coisa com a natureza. Se nós tivermos as plantas num solo bem nutrido, as plantas são alimentadas e resistem melhor do que as plantas que só recebem comida artificial. Essas são muito mais frágeis e precisam de muito mais cuidados químicos.

 

Um dos focos da Luísa ao tomar as rédeas deste projeto foi que os clientes passassem a saber de onde vêm os produtos que consomem, porque hoje em dia há uma grande distância entre quem consome e quem produz. Por que acha que é tão importante que a comunidade saiba a origem daquilo que está no seu prato?

Primeiro que tudo, eu acho que é muito importante que, quem consome, tenha consciência do consumo que tem. Acho que os consumidores têm muito pouca consciência e não percebem que está tudo na mão deles. Queixamo-nos muito de tudo, que é o Estado e que são os governos que devem liderar a mudança, mas na verdade é o consumidor que manda. Se o consumidor decidir que não compra determinada coisa, aquela coisa desaparece. Se o consumidor decidir que não quer comprar produtos que são tratados com produtos químicos, os produtos químicos desaparecem. A força está toda no consumidor e é o consumidor que tem feito com que se esteja a perder cada vez mais qualidade, pela força do preço. Quando o consumidor exige preço barato, tem de perceber que não vai ter qualidade nunca. Não é passível de haver qualidade com preços baixos. E pronto, se calhar, em vez de um bife, devíamos comer um quarto de bife. Temos de comer menos, para comer melhor e temos de pensar em opções que realmente nos ajudem a comer melhor e a deixar o mundo melhor. Não podemos estar só focados no preço.

O barato sai sempre caro. Nós pensamos muito no imediato, mas esquecemo-nos que o imediato não traz futuro. Para termos um futuro mais ou menos risonho, temos de pensar quando estamos a consumir. Que consequências está a ter aquele nosso consumo? Acho mesmo importante e crucial que a pessoa pense naquilo que está a fazer quando está a agarrar uma coisa no supermercado.  Como é que é possível aquilo ser tão barato? Como é que podemos ter 8 ou 10 iogurtes a custar um euro e tal? O que é aquilo? Como é que aquilo se processa, desde o leite da vaca até chegar à prateleira? Ou uma cenoura a custar 40 cêntimos o quilo?

Acho que temos de pensar nisso tudo e preservar as marcas.

 

O que acha que impede outros produtores de seguirem este mesmo caminho de agricultura biológica, numa época em que os consumidores estão cada vez mais exigentes neste sentido?

Felizmente, há cada vez mais pessoas a fazer agricultura biológica. No entanto, o agricultor convencional, que já é profissional, tem alguma dificuldade em mudar. Nós, de facto, somos um povo com muita dificuldade na mudança, não é? Não gostamos de mudanças. São anos de práticas e as pessoas acham que se pararem de fazer aquilo não conseguem produzir.

Esta coisa de dizer que, se toda a gente produzisse em modo biológico, não havia comida para as pessoas é totalmente falsa, porque nós produzimos em excesso. Temos excessos estúpidos de tudo. É a casmurrice, é a dificuldade e é não experimentar. Para além disso, a maior parte dos agricultores têm 2-3 culturas diferentes, não fazendo mais do que isso. Muitos até fazem só uma cultura! Na agricultura biológica, por sua vez, é essencial haver rotações e haver pousios. São práticas que a maior parte dos agricultores não consegue compreender. Tem de haver espaço livre na terra para ter bandas ecológicas, aqueles matos onde os bichos se escondem e depois nos ajudam a combater as pragas. Numa cultura intensiva, não há espaço para isso. Todo o campo é aproveitado ao milímetro para produzir.

 

A água, este recurso tão precioso e tão escasso, é essencial para o cultivo dos hortícolas. Como consegue garantir uma gestão sustentável deste recurso na Quinta do Arneiro?

Nós não conseguimos, pois não conseguimos inventar água. Felizmente, a quinta tem uma várzea grande, onde ainda conseguimos ter charcas com um bocadinho de água que se vai mantendo.

Claro que estamos a regar o essencial e estamos atentos. Culturas que se calhar podiam estar durante mais tempo, quando começam a ficar velhas, estamos a desistir delas mais depressa, porque não podemos estar a desperdiçar qualquer gota de água. Mas nunca sabemos até quando é que a vamos ter.

Nunca nos aconteceu isto, de chegar ao princípio de agosto e estarmos a pensar que podemos não ter água em setembro! Estamos agora a começar a plantar as coisas de inverno, nomeadamente as couves, que precisam de bastante água para crescer. Como são plantas de inverno, se não levarem água suficiente nem se desenvolvem. Nós achamos sempre que a água é só a que sai da torneira, mas não. Se não houver água, não há comida, não há alimento.

 

Qual o tipo de cliente da Quinta do Arneiro? São as novas gerações que valorizam a agricultura biológica? Ou as gerações mais antigas têm também essa preocupação? 

Eu acho que são gerações mais novas, dos 40 anos para baixo, que estão muito mais alerta para isto. A minha geração é muito fraca nestas experiências. Quando as pessoas mais velhas estão presentes é porque são os mais novos, os filhos, a ensinarem. Acho que é a primeira vez que acontece haver uma geração mais nova a ensinar a geração mais velha. Normalmente é o contrário.

 

Os produtos biológicos acabam por estar associados a pessoas e a empresas que se preocupam com o meio ambiente. No entanto, é frequente encontrarmos em grandes superfícies os hortícolas biológicos embalados em plástico. Não será isso um contrassenso?

Isso é obrigatório, porque se tiverem os produtos numa área comercial onde há produtos dos dois tipos - convencional e biológico - tem de haver uma maneira de os distinguir e só pode ser através do embalamento. Se estivessem os dois a granel, mesmo que fisicamente separados na loja, dentro do armazém podia haver confusão. Um cliente pode, de repente, agarrar numa cenoura convencional e levá-la para a zona do biológico e deixá-la lá. Enfim, havia sempre muita hipótese de haver ali trocas de produtos, que não pode acontecer.

Por isso, o ideal é comprar em mercearias biológicas ou em lojas que sejam mesmo biológicas certificadas. Mas sim, é um contrassenso, por um lado, mas por outro, é a única maneira de obter produtos biológicos em grandes superfícies. Pode ser que um dia seja ao contrário: os biológicos a granel e os convencionais embalados.

 

Sente que as pessoas estão a querer reeducar-se e a educar as novas gerações para saberem que não há morangos todo o ano (ou havendo, são importados), que há produtos da época e que a natureza deve ser respeitada?

Eu acho que sim. Mas é importante considerar que nós estamos sempre a falar de uma bolha muito pequenina, que depois rebenta e há todo um mundo por fora, que está nem aí para o biológico. Na verdade, não há muita gente que está envolvida nisto. Claro que, quando nós vivemos nesta bolha, é como quando estamos grávidas: quando a pessoa está grávida, toda a gente está grávida. Quem trabalha neste mundo só vê pessoas preocupadas. Mas a maior parte das pessoas não está preocupada com estas questões.

Neste mundo, felizmente, cada vez há mais pessoas preocupadas com isto também. Há pessoas que até tomam como um desafio e gostam mesmo de comer só alimentos da época. Eu, por exemplo, só como produtos da época, nem consigo fazer de outra maneira. É muito bom termos saudades do tomate e, quando chega a altura do tomate, ficamos cheios de vontade de comer. Há uma época certa para os alimentos, os quais nos dão aquilo de que precisamos na altura certa. Por exemplo, devemos comer laranjas no inverno porque têm vitamina C. Está tudo tão bem feito, que é uma estupidez andarmos sempre a meter o dedo e a alterar a lógica natural das coisas.

 

O arranque do restaurante da Quinta do Arneiro – um desejo que já tinha há muitos anos – corresponde à criação de um conceito da horta para o prato. Pode-se dizer que tem uma verdadeira cozinha km0? 

Não, porque nem tudo o que temos no restaurante é produzido na quinta. Há as farinhas, as quinoas, o arroz, que não são quilómetro zero. Desde que abrimos após o confinamento, deixámos de ter carne, por isso os vegetais, que são a base, são quilómetro zero. Mas tudo não era possível.

 

Os produtos transformados que a quinta produz – desde o molho de tomate, as bolachas, as pies, etc. – são uma forma de combater o desperdício alimentar?

Sim, tudo começou com o tomate. No primeiro ano havia imenso tomate e não tínhamos a quem o vender, porque as pessoas vão de férias em agosto e é neste mês que há muito tomate. Tanto que chegou a acontecer termos de deitar fora tomate, o que era algo horrível.

Foi a partir daí que começámos a fazer a transformação numa cozinha. Depois fizemos um restaurante, mas percebemos que o restaurante também não dava para fazer a produção diária de excedentes. Então, fizemos outra cozinha e agora até já produzimos mais do que tomate. As sopas, por exemplo, são feitas com excedentes da horta, seja cenoura, abóbora, acelgas, o que for. Fazemos ainda compotas e até pickles quando temos excedentes de alguns legumes.

 

Quais os grandes desafios e obstáculos que tem vindo a enfrentar em 15 anos de Quinta do Arneiro?

Foi muito trabalho e muito stress. Para além disso, uma pessoa não saber bem por onde começar, nem saber que ia chegar até aqui. De facto, há uns anos não fazia a mínima ideia que ia chegar aqui.

Querer ver as coisas feitas e saber que as coisas demoram tempo é também muito stressante. Foram uns anos muito extenuantes para mim. Até porque eu não considero nada que seja uma gestora. Posso ser empreendedora e gosto de fazer coisas, mas depois não gosto nada do dia a dia. E sou muito obsessiva, gosto das coisas sempre muito bem feitas. Gosto de ver as coisas todas direitinhas e certinhas, e isso também é um desafio porque depois temos de manter a qualidade. Custa-me imenso quando recebemos alguma reclamação, é algo que me toca muito.

 

A primeira coisa que lhe vem à cabeça quando pensa em...

- Quinta do Arneiro? Trabalho

- A maior paixão? Natureza

- O maior receio? Não ter dinheiro

- O que a move? Fazer bem feito

- A sua inspiração? A Riverford

- Um sentimento? Paixão

- Um livro? A Sombra e o Vento

- Um filme? Não tenho um filme

- Uma viagem? Noruega

- 2021? Foi bom

- 2022? Também está a ser bom

- Futuro? A Deus pertence